fbpx
HomeArtigosInteligência ArtificialDo Prompt Nasce uma Nova Voz

Do Prompt Nasce uma Nova Voz

Em um momento em que boa parte da indústria fonográfica grita “parem as máquinas” sempre que alguém fala em Inteligência Artificial (IA), uma cena nova começa a se formar: em vez de temer a tecnologia, alguns artistas, como meu amigo Marcelo Roque e eu, estão compondo junto com ela.

É desse encontro que nasce Iara Luz, uma cantora virtual, um avatar criado 100% com IA, filha direta da tradição da música brasileira e da ousadia digital da gravadora Nhocuné Music.


Música sempre foi tecnologia

Antes de falar de Iara, vale encarar um fato incômodo: a música nunca foi pura. Ela sempre dependeu de tecnologia para existir. O tambor foi tecnologia. O violão foi tecnologia. O piano, o microfone, o gravador de fita, o sampler, o sintetizador, o autotune, o MP3, o software de edição… tudo isso foi visto, em algum momento, como ameaça.

Sem o multitrack, os Beatles não seriam os Beatles. Sem sampler, não existiria boa parte do hip-hop. Sem DAW, não existiria a cena independente do quarto-estúdio.

A IA é só o próximo degrau dessa mesma escada!

A contradição de sempre: toda ruptura musical começou com um “isso não é música”

Quando o sampler apareceu, disseram que “copiar” trechos de outros discos era roubo, não criação. Quando o autotune virou estética, disseram que os cantores tinham perdido a autenticidade. Quando os sintetizadores dominaram o pop, anunciaram o fim dos instrumentos “de verdade”. O resultado você conhece: essas tecnologias não mataram a arte, elas criaram gêneros inteiros.

Agora, o alvo do pânico da vez é a IA. O roteiro é o mesmo: medo de perda de controle econômico, medo de deslocamento de prestígio, medo do desconhecido. Mas a história mostra que quem cresce nessas viradas não é quem tenta barrar a maré — é quem surfa em cima dela.


IA não tem alma; quem tem alma é o compositor

A diferença é simples: IA não sente. Não ama, não sofre, não envelhece, não perde o ônibus, não leva fora, não chora no travesseiro. Quem faz isso é gente.

O que a IA faz é outra coisa: ela permite transformar ideias em som numa velocidade absurda, democratiza a produção para quem não tem estúdio caro, abre possibilidades tímbricas quase infinitas e livra o artista de grande parte da burocracia técnica.

Nesse contexto, a IA não substitui o criador; ela amplifica o alcance do criador.

Música sempre foi um grande remix coletivo

Rock bebeu do blues. O blues nasceu da dor e da resistência de povos escravizados. O jazz é fusão. O pop é remix permanente de tudo isso.

Nenhum compositor cria do zero: todo mundo ouve, incorpora, mistura, distorce, reinterpreta. Então porque é que as pessoas estão esperando que os modelos de IA, treinados com músicas, pudessem criar música do zero?

A IA faz a mesma coisa, ouve, incorpora, mistura, distorce, reinterpreta, só que de forma mais explícita e acelerada. Ela aprende com milhões de gravações humanas — como qualquer músico sempre aprendeu ouvindo discos, rádios, playlists. A diferença é que agora o ouvir virou processar padrões.

Chamar isso de roubo e, ao mesmo tempo, aceitar tranquilamente que um guitarrista copie licks de todos os seus ídolos é uma incoerência histórica. O problema real não é estético, é jurídico e econômico: como remunerar direito num mundo em que tudo é dado digital?

Essa conversa é importante, mas definitivamente é outra conversa.


Entre o medo e a criação, a Nhocuné Music escolheu criar

No meio desse debate, meu amigo Marcelo Roque (poeta, letrista e artista plástico) e eu decidimos não pedir licença ao futuro. Juntamos nossas letras, nossos violões, nossas referências de samba, MPB, rock, soul, R&B e começamos a experimentar o estúdio do século XXI: um setup onde plugins, DAWs e ferramentas de IA dividem espaço com cadernos de anotações, riffs assobiados e ideias que surgem no ônibus.

Daí nasceu a Nhocuné Music: uma gravadora que assume de cara que seus artistas podem ser orgânicos, virtuais ou híbridos, mas que o coração do processo é sempre humano. As canções começam na cabeça, no caderno e no violão; a IA entra depois, como ferramenta de arranjo, timbre, voz, finalização.

É desse ambiente que surge a cantora Iara Luz.


Iara Luz
Iara Luz

Quem é Iara Luz?

Na biografia oficial, Iara é paulistana. Nasceu e cresceu na Zona Leste de São Paulo, no bairro da Vila Nhocuné, onde viveu até os 25 anos. É filha de uma cidade barulhenta, cortada por ônibus, botecos com TV ligada em jogo de quarta-feira, funk de madrugada no vizinho, samba no fim de semana e o gospel ecoando em alguma garagem improvisada.

Mas Iara tem um detalhe: ela não existe no cartório, existe no código. É uma cantora virtual, um avatar vocal e visual criado integralmente com Inteligência Artificial a partir da nossa visão artística. Nós escrevemos as letras, definimos o clima das músicas, escolhemos as harmonias, costuramos as referências de soul, R&B, samba e pop. A IA entra como parceira de estúdio: ajuda a esculpir a voz, sugerir nuances, testar arranjos, experimentar climas sonoros que seriam caríssimos num estúdio tradicional.

O resultado está na playlist oficial da artista hospedada no canal da Nhocuné Music no YouTube. A cada faixa, Iara soa como aquilo que é: um ponto de encontro entre a canção brasileira e o laboratório digital.

O heterônimo de uma geração conectada

Se Fernando Pessoa tinha seus heterônimos de papel, Iara Luz é um heterônimo de silício. Iara é a persona que canaliza: a experiência de quem cresceu em bairros como a Vila Nhocuné; a tradição da música popular brasileira, com suas dores e delícias; a curiosidade de uma geração que já nasceu convivendo com algoritmos, redes sociais e assistentes virtuais.

Iara é a artista que pode cantar uma balada romântica, um neo-soul, um samba moderno ou um R&B urbano sem sair do lugar — porque seu lugar é um conjunto de parâmetros ajustáveis em algoritmo, guiados por decisões artísticas humanas.


Por que Iara não é ameaça, e sim sinal de futuro

O aparecimento de artistas virtuais costuma despertar reações extremas:
“isso vai matar os músicos”, “isso é fraude”, “isso é o fim da arte”. Mas, olhando com calma, Iara Luz mostra o contrário:

  • Ela não substitui ninguém. Não há um cantor desempregado “no lugar dela”; há apenas dois artistas aqui que, sem dinheiro para um grande estúdio, encontraram uma forma de fazer a música acontecer.
  • Ela democratiza o estúdio. As ferramentas usadas na criação de Iara custam muito menos do que o aluguel de um estúdio tradicional com banda completa e engenheiro de som.
  • Ela amplia o repertório. Em vez de mais do mesmo, abre espaço para narrativas e timbres que talvez nunca ganhassem voz.

IA não é o fim do artista; é o fim da desculpa de que só grava quem tem muito dinheiro.

Do medo ao manifesto

Diante de tanto pânico em torno da IA, Iara Luz funciona, na prática, como um manifesto: a favor da coragem de experimentar; a favor da honestidade de crédito (deixar claro que há IA envolvida); a favor de uma visão em que humano e máquina compõem juntos, sem fetiche e sem medo.

Se no passado a música foi guardada em caixas de madeira (violões), caixas de metal (toca-discos), caixas de plástico (toca-fitas), depois em iPods, agora ela cabe também em uma caixa diferente: um cérebro de silício capaz de processar e recombinar todas as músicas já feitas.

Descer do pedestal achando que está lutando “contra o mal” da IA, ignorando toda a história de acúmulo tecnológico da música, é virar as costas para o próprio caminho que o som trilhou até aqui.


Iara Luz
Iara Luz

Nasce uma nova voz

No fim das contas, Iara Luz não é um truque tecnológico. Ela é a expressão de uma ideia simples e poderosa:

A música sempre foi humano + tecnologia. Hoje essa tecnologia se chama Inteligência Artificial.

Da Vila Nhocuné para o mundo, da linha de código ao microfone, nasce uma nova voz — feita de dados, mas guiada por gente de carne, osso e história. Quem quiser discutir o futuro da música não precisa começar pelo medo. Pode apertar o play na playlist da Iara Luz e ouvir, na prática, como esse futuro já está soando.

Iara Luz
Iara Luz

últimos artigos

explore mais