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De Omolu a Obaluaiê

Descubra a fascinante trajetória de Omolu, o orixá que carrega em seu manto de palha os mistérios da doença e da cura. Neste texto, você conhecerá suas origens africanas, mitos sagrados e a riqueza do seu culto no Candomblé, revelando como esse poderoso senhor da terra e da saúde atravessou séculos para chegar até nós.

A Origem Africana de Omolu

Omolu (também chamado Obaluaê ou Xapanã, entre outros epítetos) tem sua origem nas tradições iorubás da África Ocidental, especialmente na região da atual Nigéria e do antigo reino do Daomé (atual Benim). Na cosmologia iorubá, Omolu é venerado como o orixá das doenças e da cura, intimamente ligado à terra e à morte.

Seu nome iorubá Ọbalúayé significa “rei, senhor da terra”, enquanto Omolu (do iorubá OmoluOmo Olu) significa “filho do Senhor”, ambos sendo títulos respeitosos usados para evitar pronunciar seu nome original, Soponna ou Xapanã. Isso ocorre porque Soponna (deus da varíola) é extremamente temido – acredita-se até que pronunciar seu nome atraia sua ira –, por isso os iorubás referem-se a ele com epítetos elogiosos como Obalúayé ou Omolu em vez de seu nome verdadeiro.

No panteão iorubá, Omolu é considerado um orixá antigo e poderoso, presente desde tempos anteriores à Idade do Ferro. Ele está associado às epidemias (sobretudo a varíola), às enfermidades contagiosas e à sua cura. Por extensão, por lidar com doenças que causam mortes, também acaba relacionado à própria morte e aos espíritos ancestrais.

Na sociedade tradicional africana, Omolu/Soponna desempenhava um papel duplo de castigador e curador: foi temido pelas pestes que podia enviar, mas também reverenciado como médico divino capaz de curar os males que ele mesmo propagava. Por isso, é cultuado fervorosamente em várias regiões. Entre os povos fonjeje (Daomé), por exemplo, ele corresponde ao vodum Sapatá (Sakpatá), conhecido como Aynon, “dono da terra”.

Sapatá é o grande vodum da terra e senhor da varíola para os fons, considerado filho de Mawu (o deus supremo) e tão temido quanto venerado. Essa convergência de atributos fez com que, historicamente, os fons vissem Sapatá/Omolu como uma divindade “nagô” (iorubá) incorporada em sua cultura

Em suma, antes da diáspora africana, Omolu já ocupava um lugar central nas religiões tradicionais da África Ocidental, simbolizando o poder sobre a vida e a morte por meio do controle das doenças e da saúde da comunidade.

Chegada de Omolu ao Brasil Colonial
Chegada de Omolu ao Brasil Colonial

Chegada de Omolu ao Brasil Colonial

Omolu chegou ao Brasil junto com os milhões de africanos escravizados trazidos durante o período colonial (séculos XVI a XIX). A partir do século XVIII e sobretudo no XIX, muitas dos negros traficados para o Brasil eram de etnias iorubás (chamados nagôs), do Golfo do Benim, bem como do antigo Daomé – regiões onde Omolu/Obaluaê era amplamente cultuado.

Os africanos escravizados trouxeram consigo seus orixás, suas línguas e suas práticas ritualísticas. No Brasil escravocrata, porém, a religião dos africanos era reprimida pelas autoridades coloniais e pelos senhores, que viam esses cultos com desconfiança e proibia sua prática aberta. Diante da perseguição, os devotos adotaram estratégias para preservar sua fé: uma delas foi o sincretismo religioso, associando orixás a santos católicos para disfarçar o culto tradicional.

Nesse contexto, Omolu/Obaluaê foi identificado principalmente com São Lázaro – santo ligado aos doentes e leprosos – devido às chagas que ambos carregam em seus corpos, e em alguns casos também com São Roque, outro santo protetor contra pestes. Desse modo, os escravizados podiam venerar Omolu sob a imagem de São Lázaro ou São Roque sem levantar suspeitas, mantendo vivo o culto de forma velada.

Outra forma importante de resistência foi a formação de irmandades religiosas e terreiros, naquela época, clandestinos. Já no período colonial tardio e Império, comunidades negras em Salvador, Recife, Rio de Janeiro e outras cidades organizaram espaços comunitários onde podiam louvar seus orixás. No século XIX, por exemplo, surgiram os primeiros terreiros de Candomblé na Bahia (como o Ilê Iyá Nassô, conhecido como Casa Branca), fundados por africanos nagôs e jejes, nos quais Omolu era cultuado seguindo os rituais trazidos da África.

Apesar de perseguidas, essas casas religiosas conseguiram transmitir os conhecimentos tradicionais às novas gerações. Até o início do século XX, a religião afro-brasileira permaneceu marginalizada e praticada em segredo – somente por volta da década de 1970 o Candomblé deixou de ser oficialmente criminalizado no Brasil.

Toda a longa história de repressão explica por que muitos elementos do culto tiveram que se adaptar: além do sincretismo com santos, toques de atabaque e cantigas em iorubá muitas vezes ocorriam sob o disfarce de festas “inocentes” ou dentro de irmandades católicas toleradas. Apesar de todas as dificuldades, os sacerdotes e fiéis afro-descendentes conseguiram preservar Omolu em solo brasileiro, garantindo a continuidade de seus ritos e mitos até os dias atuais.

A Jornada de Omolu
A Jornada de Omolu

História Mitológica de Omolu

As lendas e mitos sobre Omolu são abundantes, transmitidos oralmente e registrados por autores como Reginaldo Prandi em Mitologia dos Orixás. Uma história fundamental conta a origem de Omolu: ele é filho de Nanã Buruku, a anciã das águas paradas e da lama, com Oxalá (Obatalá), o orixá da criação. Ao nascer, porém, Omolu veio ao mundo com o corpo todo coberto de feridas purulentas, como se já estivesse acometido por uma terrível doença (a varíola). Nanã, horrorizada e temendo o estigma, abandonou o filho à beira-mar.

Quem Omolu resgatou foi Iemanjá, a rainha do oceano: ela acolheu o bebê, banhou-o nas águas salgadas e assim secou suas chagas. Sobrevivendo aos cuidados de Iemanjá, Omolu cresceu forte, porém as cicatrizes das feridas permaneceram em seu corpo. Para poupá-lo da vergonha e do olhar alheio, Iemanjá confeccionou para ele uma roupa de palha da costa (ráfia) – um capuz e vestimenta de fibras vegetais que cobrem quase todo seu corpo – de modo a esconder as marcas da doença.

Mesmo ocultando sua aparência, Omolu tornou-se um homem poderoso, andando de aldeia em aldeia. Iemanjá, contudo, via que seu filho adotivo ainda vivia na pobreza e decidiu presenteá-lo com a grande riqueza do mar: as pérolas. Segundo o mito, Iemanjá o nomeou Jeholu, “senhor das pérolas”, e entregou-lhe todas as pérolas que as ostras fabricavam. Desde então, diz-se que as pérolas pertencem a Omolu – por baixo de sua roupa de palha, ele carrega inúmeros colares de pérolas adornando seu corpo marcado. Essa narrativa ressalta a compaixão de Iemanjá e reforça a ideia de que por trás da aparência temível de Omolu existe uma riqueza e beleza escondidas.

Outro conjunto de mitos descreve a jornada de Omolu e sua transformação em Obaluaê, o senhor da terra. Em uma dessas histórias, Omolu, ainda jovem (com cerca de doze anos), resolve sair de casa para buscar seu destino. Peregrinou de comunidade em comunidade em busca de trabalho, mas por ser um menino desconhecido e doente (suas feridas causavam repulsa), ninguém o queria contratar ou ajudar.

Sem ter como se sustentar, Omolu passou a mendigar e acabou vivendo recluso na mata, na companhia apenas de um cachorro que o seguia fielmente. Alimentando-se de frutas e raízes da floresta, ele sofreu muito: os espinhos lhe rasgavam a pele e os mosquitos o picavam sem piedade, fazendo suas antigas chagas piorarem a ponto de cobrir seu corpo inteiro.

Seu único alívio era o cão, que lambia suas feridas para consolá-lo. Após um longo período de provações, Omolu caiu exausto e teve um sonho ou visão: ouviu uma voz de Olorum (Deus Supremo) dizendo que sua missão estava pronta e que ele deveria levantar-se para cuidar do povo. Ao despertar, milagrosamente todas as suas feridas estavam cicatrizadas – ele já não sentia dores nem febre. Renovado, o jovem juntou suas cabaças de remédios e água (as quais aprendera a manipular com os segredos da mata) e agradeceu a Olorum, entendendo que havia recebido o dom da cura.

Naquele tempo, uma terrível peste assolava a Terra, dizimando aldeias inteiras. Omolu dirigiu-se então às comunidades e, onde quer que chegasse, sua fama de curandeiro precedia sua vinda – os mesmos que antes o desprezaram agora o recebiam com festa e súplicas por ajuda. Com conhecimento de ervas, pós sagrados e axés, Omolu curou os enfermos em cada localidade, detendo a epidemia.

Ao retornar à sua aldeia de origem, Omolu libertou também seus próprios pais (Nanã e Oxalá) da doença. O povo, em gratidão, o aclamou como Obalúa’yé – “Rei, senhor da Terra”, aquele que domina a peste e restitui a saúde. Assim, Omolu passou de um menino miserável a um senhor reverenciado, transformando-se naquele que conhecemos como Obaluaê, o orixá que rege tanto as doenças quanto as curas.


Há também mitos etiológicos que explicam símbolos do culto de Omolu. Um dos mais conhecidos envolve a pipoca (deburu), alimento típico de suas oferendas. Conta-se que Nanã certa vez puniu o pequeno Omolu por ele ter desobedecido e pisado em suas flores sagradas; como castigo, seu corpo ficou repleto de feridas. Arrependida ao ver o sofrimento do filho, Nanã preparou pipocas (milho estourado na areia quente) e as jogou sobre as chagas de Omolu, que foram milagrosamente curadas pelas pipocas brancas. Por isso, até hoje a pipoca é chamada de “flores de Omolu” – cada pipoca branca representa uma ferida cicatrizada, sendo um símbolo da cura e da bênção desse orixá.

Outra lenda muito difundida no Brasil narra o encontro de Omolu com Iansã (Oyá), orixá dos ventos e tempestades. Nessa história, Obaluaê, ainda marcado pelas chagas e coberto pela palha, comparece discretamente a uma festa onde todos os orixás dançavam. Por causa de sua aparência soturna, ninguém se aproximava dele para dançar, deixando-o isolado. Iansã, porém, notou a situação e compadeceu-se. Em dado momento, ela aproximou-se de Omolu e soltou um poderoso vento, levantando as palhas que o cobriam. As feridas de Obaluaê, tocadas pelo vento de Iansã, desprenderam-se de seu corpo e se transformaram numa chuva de pipocas brancas que caíram pelo salão. Nesse instante, revelou-se sob a palha um jovem belo e radiante, pois Omolu estava curado de sua deformidade. A partir daí, conta-se que Iansã e Obaluaê tornaram-se grandes amigos e até companheiros no reino dos mortos, compartilhando o poder sobre os espíritos dos falecidos.

Essa narrativa destaca a importância de Oyá/Iansã como única capaz de encarar Omolu sem medo, ajudando-o a integrar-se socialmente e manifestar sua verdadeira essência.

Os mitos de Omolu, sejam de origem iorubá ou jeje, apresentam mensagens sobre exclusão e acolhimento, punição e misericórdia, doença e cura. Eles explicam por que seus filhos e devotos lhe oferecem pipocas, por que ele se veste de palha, e por que é saudado com Atotô! (silêncio!), lembrando que é preciso respeito diante do senhor da terra e das enfermidades.

Conforme ressalta Reginaldo Prandi, longe de ser “mitos no sentido de falsidade”, essas histórias formam uma mitologia primordial que carrega os arquétipos e valores associados a Omolu. Através delas, entende-se Omolu como um orixá de dualidade – ao mesmo tempo temido (pela doença) e amado (pela cura) –, cuja trajetória vai da dor extrema à compaixão divina, simbolizando que até do sofrimento pode advir a salvação e a sabedoria.

Conexões de Omolu com os Demais Orixás
Conexões de Omolu com os Demais Orixás

Conexões de Omolu com os Demais Orixás

Dentro do panteão afro-brasileiro, Omolu mantém relações estreitas com vários diversos orixás, seja por laços de família nos mitos, seja por afinidades de domínio. Os principais vínculos incluem:

Nanã Buruku | É tradicionalmente considerada mãe de Omolu. Nanã é uma orixá anciã ligada às águas paradas, à lama e aos segredos da morte. Nos mitos, ela fornece a matéria-prima (barro) para Oxalá modelar os humanos , e por isso está associada à vida e à morte.

Com Omolu, Nanã tem uma relação ambivalente: embora o ame, em algumas histórias ela o abandona por causa das feridas, enquanto em outras ela mesma o salva (como no caso da cura pelas pipocas).

Assim, Nanã e Omolu compartilham o poder sobre a doença e a morte – ambos podem tanto enviar enfermidades quanto curá-las ou evitá-las, se devidamente venerados. Nanã é vista como a “avó” dos orixás e Omolu, seu filho, herda dela a antiguidade e a dignidade sombria, além de certos tabus em comum (por exemplo, Nanã não usa objetos de ferro em seus ritos, tabu este que também é observado em cultos de Omolu).


Oxalá (Obatalá) | Em muitas genealogias míticas, Oxalá é o pai de Omolu, por ter se unido a Nanã. Oxalá é o grande orixá criador, associado ao branco e à paz. A união de Oxalá com Nanã simboliza a junção da criação com a matéria da terra (barro). Embora Oxalá não participe ativamente dos mitos de Omolu depois do nascimento, ele é uma figura de autoridade paterna.

Em algumas variantes, em vez de Oxalá, cita-se Olodumaré (Deus Supremo) como pai de Omolu – o que enfatiza Omolu como um ser diretamente ligado ao poder divino maior. De todo modo, a herança paterna faz de Omolu um orixá que carrega o axé tanto de Oxalá (vida) quanto de Nanã (morte), consolidando sua posição única entre os orixás.


Oxumarê | É frequentemente mencionado como irmão de Omolu, também filho de Nanã. Enquanto Omolu representa o que é velho, sofrido e terrestre, Oxumarê representa a renovação e o ciclo, sendo o orixá do arco-íris, das chuvas e serpente celeste. Os mitos contrastam os dois irmãos: Nanã teria escondido o “filho feio” (Omolu) sob as palhas e exaltado o “filho belo” (Oxumarê) colocando-o no céu para todos admirarem.

Apesar disso, Nanã ama ambos e ambos possuem dons complementares – Omolu cuida das doenças na terra, Oxumarê traz a chuva que refresca a terra e dá continuidade à vida. Em algumas tradições jeje, há menção também de Euá como irmã de Omolu (uma deusa ligada à morte e ao invisível), o que reforça a ideia de uma família mítica relacionada aos ciclos de vida e morte.


Ossaim (Osanyin) | Certas vertentes do Candomblé consideram Ossaim, orixá das folhas medicinais, como irmão ou associado a Omolu, dado que Nanã também seria sua mãe em alguns mitos. Ossaim é o detentor do conhecimento das ervas e da cura pelo poder vegetal. Essa ligação faz sentido porque Omolu, para curar as pestes, utiliza folhas, pós e remédios tradicionais – habilidades que possivelmente lhe vieram de Ossaim ou de ensinamentos semelhantes.

Embora nem todas as linhagens enfatizem esse parentesco, Omolu e Ossaim certamente convergem no aspecto da cura: ambos são consultados para tratar enfermidades (Ossaim fornecendo as folhas sagradas e Omolu o poder de liberação da doença). Assim, há uma afinidade natural entre os dois orixás no ofício de médicos espirituais.


Iemanjá | No Brasil, Iemanjá é tida como mãe adotiva de Omolu, graças à lenda em que ela o resgata do abandono e salva sua vida. A relação de Iemanjá com Omolu é de profundo amor maternal: ela não só cura as feridas do menino nas águas salgadas, como também lhe propicia riqueza (as pérolas do mar) e dignidade. Iemanjá é conhecida como mãe dos orixás e dos homens, então abraçar Omolu reforça seu arquétipo de misericórdia e nutrição. Em retribuição, Omolu mantém enorme respeito por Iemanjá.

No sincretismo como catolicismo, curiosamente, ambos acabam ligados a figuras diferentes de Maria (Iemanjá sincretiza-se com Nossa Senhora, enquanto Omolu com São Lázaro), mas nas tradições orais o laço entre eles permanece firme. Essa conexão também simboliza a união entre o mar e a terra – Iemanjá governa as águas salgadas e Omolu, a terra firme; juntos, representam o equilíbrio dos elementos e a passagem da purificação (água) para a estabilidade (terra).


Oyá (Iansã) | Oyá não é parente de Omolu, mas desempenha papel importante em sua trajetória mítica e na liturgia. Ela é reverenciada como companheira e aliada de Omolu, especialmente no aspecto funerário.

No mito do baile dos orixás, foi Iansã quem, com o vento, revelou a verdadeira face de Obaluaê e o libertou da vergonha. Desde então, a tradição diz que Oyá e Omolu tornaram-se amigos e chegaram a reinar juntos sobre os espíritos dos mortos – Oyá é a guardiã do cemitério e conduz os eguns (espíritos ancestrais), e Omolu também tem ligação com a morte e com Egungun. Juntos, eles controlam a porta entre o mundo dos vivos e dos mortos, impedindo demandas negativas dos espíritos sobre os homens.

Não por acaso, nos terreiros, há cânticos e xirês específicos em que Iansã e Omolu interagem, e muitos acreditam que onde um está trabalhando, o outro também auxilia. Essa parceria simboliza a complementaridade entre o vento (que espalha e transforma) e a terra (que recebe e consome) – Oyá espalha as doenças (ou as alivia, no caso do vento curador), enquanto Omolu as recolhe de volta à terra.


Exu e Omulu | Exu (Elegbará) é o mensageiro e guardião dos caminhos. Embora não tenha parentesco direto com Omolu, há uma relação de precedência e respeito mútuo. Registros indicam que no culto do Daomé, Obaluaê (Sapata) ocupava uma posição logo após Exu em importância, chegando a ter lugar privilegiado até mesmo no oráculo de Ifá. Isso significa que, ritualmente, Exu abre os caminhos e logo em seguida Omolu é chamado, reconhecendo-o como potência fundamental. Além disso, Exu é quem carrega as oferendas e pedidos de cura até Omolu, e controla os espíritos errantes que podem causar doenças – ou seja, Exu e Omolu atuam em esferas próximas (um na mediação, outro na execução da justiça através da doença ou cura).

Vale lembrar que durante as procissões sincréticas, a imagem de São Lázaro (Omolu) muitas vezes vinha acompanhada de cães, os quais também são símbolos de Exu em certos contextos. Essa justaposição reforça o elo: Exu abre os caminhos da saúde, Omolu efetua a cura (ou a enfermidade, se ofendido).


Xangô | Orixá da justiça e do trovão, Xangô não aparece diretamente nos mitos clássicos de Omolu em terras iorubás, mas em tradições fon/jeje há um paralelo interessante: fala-se de Sobô ou Sogbo, um deus do trovão, como irmão de Sapatá (Omolu). Uma lenda dahomeana conta que Sapatá trouxe riquezas do céu enquanto Sobô reteve o controle da chuva e do fogo; houve um conflito de poder entre eles que terminou com reconciliação quando Sapatá cedeu a Sobô o domínio do firmamento, e Sobô (Xangô) passou a visitar a terra de vez em quando na forma de relâmpagos em homenagem a Obaluaê.

Essa narrativa, embora de outra cultura, alinha Xangô e Omolu como forças complementares – fogo do céu e fogo da terra – que se equilibram. No Candomblé Ketu, não há mito direto unindo Xangô e Omolu, mas ambos são orixás “quentes” (de intensa energia) e têm seu culto fortemente estabelecido no reino de Oyó na África, o que os torna respeitosos um com o outro.


Todas essas conexões com os demais orixás demonstram que Omolu não atua isoladamente: ele faz parte de uma família divina complexa. Sua figura transita entre os orixás das águas (Nanã, Iemanjá), os orixás da terra e florestas (Oxalá, Ossaim) e os orixás dos ares e fogo (Iansã, Xangô), ocupando uma posição singular de ponte entre vida e morte.

Essa rede de relações também se reflete no culto – por exemplo, nas festas de Obaluaê costuma-se cantar para Nanã e Ossaim, invocando a força conjunta de mãe e irmão na cura, e Oyá é invocada para levar embora as negatividades. Assim, Omolu está inserido no equilíbrio coletivo do axé, cooperando e interagindo com os demais orixás para manter a ordem cósmica e a saúde do mundo.

Culto a Omolu no Candomblé
Culto a Omolu no Candomblé

Cultos a Omolu no Candomblé

Omolu é amplamente cultuado nas religiões afro-brasileiras, especialmente no Candomblé, com algumas variações conforme a nação (tradição etno-cultural) de cada terreiro. De modo geral, ele é reverenciado como orixá das doenças e da cura, protetor dos enfermos e excluídos. A seguir, destacam-se aspectos do culto nas principais nações:

Nação Ketu (Nagô-Yorubá) | Nação de origem iorubá, é a forma de Candomblé mais difundida. Omolu (ou Obaluaê) é cultuado seguindo os preceitos iorubanos. Considerado um orixá velho, de grande respeito, costuma receber a saudação “Atotô!”, que significa “Silêncio!” – um pedido de quietude e reverência em sua presença.

No Ketu, muitos reconhecem Omolu e Obaluaê como o mesmo orixá, embora haja quem diferencie “qualidades” ou aspectos jovens e velhos. Uma visão popular na Bahia é chamar Omolu de “o velho” e Obaluaê de “o moço”, mas sacerdotes ortodoxos explicam que na verdade são títulos intercambiáveis para Xapanã, havendo vários avatars dentro dele. Ildásio Tavares, estudioso do candomblé, menciona até 13 qualidades de Omolu – entre elas, Jagun seria a manifestação mais jovem – o que ilustra a riqueza interna deste orixá.

Em termos de ritual, um traço marcante é a evitação de metal nos sacrifícios tradicionais a Omolu/Obaluaê. Por ser anterior à era do ferro, seu culto original não usava facas metálicas (que pertencem a Ogum); animais oferecidos a ele eram sacrificados por sufocamento ou com lâminas de madeira/cerâmica. Pierre Verger registrou que tanto Omolu quanto Nanã mantinham esse costume na África, indicando a antiguidade de seus cultos.

Hoje, entretanto, muitos terreiros Ketu no Brasil já utilizam faca de metal para Omolu, reverenciando Ogum antes do ato – uma acomodação às normas gerais do candomblé contemporâneo. No xirê (giro de cantigas), por exemplo, Omolu geralmente dança nos toques finais, evidenciando seu status elevado e temido. Suas danças são contidas, com movimentos pesados e às vezes mancando, aludindo tanto à idade quanto às feridas.

Os filhos (iniciados) de Omolu costumam vestir roupas de palha-da-costa cobrindo o corpo e máscaras de palha sobre o rosto durante suas incorporações, representando o orixá escondido pelas palhas. Seus objetos sagrados incluem o xaxará (ou íleo), um feixe de ramos de palha ou palmeira decorado com búzios e contas, usado para purificar os ambientes e os fiéis. A cor associada a Omolu no Ketu varia entre preto, branco e vermelho (cores que remetem à doença, à pureza e ao sangue/vida). Segunda-feira é o dia da semana consagrado a Omolu, e anualmente a festa principal ocorre em agosto, por volta do dia 16, quando se celebra o Olubajé.


Olubajé | É importante destacar o ritual do Olubajé, presente sobretudo nos terreiros Nagô-Ketu, mas também adotado em outras nações. Olubajé significa “comer juntos” (do iorubá olu-bajé). Trata-se de um banquete ritual de cura e partilha dedicado a Omolu/Obaluaê. Nessa cerimônia, comidas votivas variadas – todas de gosto simples e preparação ritualística – são oferecidas ao orixá e compartilhadas com os convidados e filhos-de-santo, simbolizando a distribuição da saúde.

O prato mais emblemático do Olubajé é o deburu, que é a pipoca estourada em areia ou azeite de dendê, sem sal. A pipoca, chamada carinhosamente de “flor de Omolu”, representa as feridas do orixá transformadas em alimento e bênção. Durante o ritual, as pipocas são frequentemente espalhadas sobre o corpo dos fiéis para absorver as energias negativas e doenças, em um ato de limpeza espiritual.

Outras comidas oferecidas podem incluir o acarajé (bolinho de feijão fradinho frito no dendê), ebô (bolo de milho branco), aberém (bolinho de milho envolto em folha), feijão preto, milho torrado, entre outras – cada casa pode ter suas receitas secretas. Tudo é servido em folhas (de mamona ou bananeira) e travessas de barro, respeitando o princípio da simplicidade.

Ao final, cada participante do Olubajé recebe porções dessas comidas sagradas, com o intuito de ingerir o axé da cura. É um momento de comunhão e fé, em que Omolu é saudado e exaltado através do compartilhamento do alimento. Esse ritual reforça o aspecto de Omolu como pai dos pobres e doentes, que vem pessoalmente “dar de comer” e salvar seus filhos, livrando a comunidade dos males físicos e espirituais.


Nação Jeje (Ewe-Fon) | Nos candomblés de nação jeje (influência fon do antigo Daomé), as divindades cultuadas são chamadas voduns em vez de orixás. Omolu aparece sob a forma do vodum Sapatá (Sakpatá), também referido como Azansú ou Dangbé em algumas casas. Sapatá é, de fato, a divindade da terra e da varíola entre os fons, e sua equivalência a Omolu é direta. No Jeje, Sapatá é venerado como Ayiñon (dono da terra) e tido como filho de Nàbúku (Nanã Buruku), assim como na mitologia iorubá.

Muitos terreiros jeje no Brasil receberam influência nagô, de modo que às vezes o chamam também de Obaluaê/Omolu, mas mantendo cantigas em fon e protocolos específicos. Por exemplo, em vez de palha-da-costa, o adepto de Sapatá pode usar uma vestimenta de fibra de dendezeiro ou palhas semelhantes chamadas jeun; os símbolos e fundamentos, contudo, são parecidos – a pipoca também é utilizada como elemento purificador, e o vodum das pestes igualmente exige respeito e silêncio.

Historicamente, sabe-se que o culto de Sapatá no Daomé era tão forte que chegou a causar conflitos políticos: alguns reis daomeanos temiam o poder dos sacerdotes de Sapatá e tentaram reprimir seu culto, mas acabaram eles mesmos vítimas de varíola. Essa reputação o acompanhou no Brasil: no Jeje, Omolu/Sapatá é um dos voduns mais temidos e ao mesmo tempo solicitados, especialmente para tratar doenças graves.

Em certos terreiros jeje, existe o cargo de Vodunsi de Sapatá (feiticeiros iniciados nesse vodum) que são procurados para curas e ebós (trabalhos espirituais) relacionados à saúde. Assim, dentro da nação Jeje, Omolu mantém seu caráter original de rei do mundo (como dizem os fons, “Sapatá é o rei do mundo”), senhor da terra e das enfermidades.

Um detalhe interessante é que os fons reconhecem Sapatá/Omolu como um culto vindo dos nagôs (iorubás) – isso se reflete na liturgia jeje-brasileira, onde por vezes Sapatá é cultuado em conjunto com Nanã e mesmo orixás nagôs, evidenciando a interculturalidade.

Em resumo, na nação Jeje, Omolu é venerado como vodum Sapatá, mantendo seus atributos de grande aivodum (vodum maior) da terra e das doenças, e as práticas de culto são similares às do Ketu com adaptações linguísticas e culturais.


Nação Angola (Bantu) | No Candomblé de Angola (de influência Bantu, principalmente das culturas do Congo e Angola), as divindades são chamadas de inkices (nkisi). Muitos terreiros de Angola incorporaram orixás iorubás em sua devoção ao longo do tempo, então Omolu às vezes é cultuado pelo próprio nome Omulu mesmo, dependendo da casa. Entretanto, tradicionalmente nas cosmologias bantas existem espíritos com atributos equivalentes aos dele.

Dois inkices em particular refletem os domínios de Omolu: Kaviungo (ou Kavungo) e Nsumbu. Kaviungo é conhecido como o senhor das doenças, da saúde e da morte – ele preside tudo que se refere a enfermidades e ao seu tratamento, e também é psicopompo, lidando com os mortos. Nsumbu, por sua vez, é o senhor da terra (chamado Ntoto pelo povo congo), aquele que governa o elemento terra e as forças telúricas. Juntos, esses dois inkices abrangem as atribuições de Omolu/Obaluaê (terra, doença, cura, morte).

Em alguns terreiros Angola, costuma-se sincretizar Omolu com Kaviungo, entendendo-o como uma única entidade: por exemplo, ao invocar Omolu, cantam-se pontos (cantigas) de Kaviungo, ou vice-versa, pois ambos são vistos como “dono da doença e da cura”. Já Nsumbu poderia ser associado a Obaluaê (enquanto aspecto de senhor da terra).

Vale lembrar que a estrutura do Candomblé Angola é um pouco diversa – sendo mais antiga no Brasil (desde o século XVII) e tendo absorvido orixás nagôs posteriormente – por isso há terreiros angola que cultuam Omolu quase da mesma forma que no Ketu, e outros que enfatizam mais os inkices bantos.

De toda forma, nas nações Angola, Omolu ocupa lugar de destaque como inkisi poderoso e temido, muitas vezes chamado carinhosamente de “Vovô” (pela sua característica anciã). Seus rituais privilegiam elementos da natureza: uso intenso de folhas medicinais (sob a égide de Katendê, inkisi das folhas), banhos de ervas fortes, pós e raízes para afastar as doenças. O sincretismo católico no Angola geralmente associa Kaviungo/Omolu a São Roque (santo invocado contra pestes, muito popular no Congo angolano colonial) ou a São Lázaro, conforme a região.

O Legado de Abaluaê
O Legado de Abaluaê

O Legado de Abaluaê

Apesar de suas variações nominais, os fundamentos do culto a Omolu são convergentes. Em qualquer nação, Abaluaê é invocado para curar doenças, romper feitiços maléficos e proteger os desvalidos. Suas oferendas são semelhantes: predominam pipocas (deburu), alimentos simples como milho, feijão, inhame, cará e pequenos animais de pena (galinha) ou quatro patas (carneiro ou porco em algumas tradições) – sempre preparados com extremo cuidado e sem temperos fortes. Oferendas de pipoca em particular tornaram-se marca registrada: na Umbanda, por exemplo, usa-se a “cura do milho de pipoca” passando pipocas quentes pelo corpo do enfermo e oferecendo-as a Omulu.

Nos terreiros de Candomblé, além do Olubajé anual, é comum realizar obrigações para Omolu em casos de epidemias ou surtos de doenças na comunidade, pois ele é visto como capaz de controlar coletivamente a saúde. Quando sua imagem sincrética (São Lázaro coberto de chagas, apoiado em muletas e rodeado de cães) entra em procissão, os fiéis costumam tocar seus trajes pedindo proteção contra as doenças. Entretanto, dentro do terreiro, Omolu é representado não por esculturas humanas, mas por seus assentamentos sagrados: panelas de barro cobertas por palha e adornadas com búzios, contendo seus objetos de poder (pó de pemba, lança de madeira, pequenas lanças chamadas ofá, contas etc.), que simbolizam a energia daquele que “tudo corrige” por meio da doença ou da cura.

Em termos de liturgia, Omolu é saudado com profundo silêncio e respeito. As rodadas de cantigas para ele geralmente terminam com o coro entoando “Atotô, meu pai!”, pedindo calma e clemência. Os iniciados manifestados por Omolu costumam se deitar no chão enrolados em palha, simbolizando o orixá caído pela enfermidade e depois renascido. Muitas vezes, espalham pipocas pelo chão do barracão ou sobre os espectadores como benção. Não raro, ao final de suas danças, Omolu realiza o gesto de varrer o chão com o xaxará, “varrendo” os males e energias pesadas. Esse ritual de varredura é temido e, ao mesmo tempo, aguardado, pois acredita-se que leva embora as negatividades.

Por fim, vale destacar a dimensão ética do culto a Omolu: ele ensina sobre a humildade e a caridade. Por ser “médico dos pobres”, seus filhos de santo e devotos muitas vezes engajam-se em ajudar enfermos, visitar hospitais ou distribuir alimentos – especialmente durante a festa de Olubajé, quando comidas são distribuídas não só dentro do terreiro, mas também aos necessitados na rua, em honra ao orixá. Essa prática solidária reforça a conexão comunitária trazida pela adoração de Omolu: através dele, as comunidades afro-brasileiras sublimaram as dores da escravidão e da doença em solidariedade, cura coletiva e esperança.

Em suma, o culto a Omolu no Candomblé, seja na nação Ketu, Jeje ou Angola, mantém a essência de venerar o senhor da terra e das pestes com temor reverencial e amor. Seus rituais são ricos em simbolismo (palha, pipoca, silêncio), suas lendas norteiam a conduta dos fiéis, e suas múltiplas faces – jovem e velho, carrancudo e compassivo – lembram que até mesmo na adversidade há possibilidade de renovação e cura.

Com base em fontes tradicionais e estudos acadêmicos, percebe-se que Omolu permanece, através dos séculos, como uma das divindades mais profundas do imaginário afro-atlântico, unindo África e Brasil por meio da fé e da resistência cultural.

Atotô, meu pai!


REFERÊNCIAS

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SILVA, Maria. Sakpatá e os voduns: contribuições para a compreensão dos cultos de matriz africana. Recife: Editora Afro, 2008.

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