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Nhocuné Music

Quando meu amigo de infância e parceiro musical Marcelo Roque — poeta, artista plástico e letrista de mão cheia — e eu criamos o projeto musical Nhocuné Music, a primeira coisa que fizemos foi colocar uma pergunta na nossa descrição do nosso canal lá no YouTube:

Mas, afinal, o que é o Nhocuné Music? Uma gravadora? Um selo independente? Uma banda? Uma estação de rádio? Um canal de música?

Esse nosso questionamento não foi uma dúvida retórica, mas o ponto de partida de tudo. A verdade é que nós mesmos não sabemos a resposta, e essa incerteza é, talvez, a definição mais honesta do nosso projeto. Para mim, Nhocuné Music é, antes de tudo, um novo modo de fazer música.

Nascemos de uma inquietação criativa em um tempo estranho e fascinante, em que a arte que chamamos de pós-contemporânea já se vê atravessada, quase que de lado, pela Inteligência Artificial. Marcelo e eu temos nossas raízes na palavra, na poesia. Comecei minha trajetória escrevendo poesias, letras de música, orações e salmos. Ele, um artista múltiplo, transita entre a poesia e as artes plásticas. Nosso ponto de encontro sempre foi a letra, o texto 100% orgânico, nascido da vivência e da reflexão. O que a Inteligência Artificial nos trouxe foi uma nova forma de dar som a essas palavras.

A dificuldade em encaixar o Nhocuné Music em uma prateleira conhecida não é um acaso, mas um sintoma dos nossos tempos. A IA está provocando uma transformação tão profunda na indústria da música que as velhas estruturas começam a parecer inadequadas. Ferramentas de IA hoje podem compor, arranjar, mixar e masterizar, funções que antes eram distribuídas entre músicos, produtores, engenheiros de som e gravadoras.

Um projeto como o Nhocuné Music, operado por apenas duas pessoas, pode agora desempenhar papéis que antes exigiriam uma equipe inteira. Os músicos, os produtores, a banda, o selo, a rádio — todas essas funções se fundem em um único fluxo de trabalho criativo. Portanto, a nossa recusa em nos definirmos não é uma falha, mas a própria essência do que fazemos: somos um experimento vivo que espelha a dissolução das fronteiras na era da Inteligência Artificial.

Marcelo Roque e Ednei Procópio em algum lugar do passado
Marcelo Roque e Ednei Procópio em 1982

O Chão de Onde Viemos

Para entender nosso som, é preciso entender nosso chão. A raiz do projeto está no lugar de onde viemos: a Vila Nhocuné, na Zona Leste de São Paulo. Aquele miolo espremido entre a Radial Leste e Itaquera, vizinho de Artur Alvim e Cidade Patriarca. O nome do nosso projeto musical é uma homenagem direta a esse território que moldou quem somos. E a história desse nome já é, por si só, uma pequena crônica da formação do Brasil.

Embora a palavra Nhocuné soe como algo saído do tupi, a etimologia folclórica, aquela que corre na boca do povo, conta outra história. Dizem que o nome é uma contração de “Nhô Coroné”, uma corruptela de “Senhor Coronel”. A versão mais difundida aponta para um antigo proprietário de terras na região, a quem os trabalhadores, muitos deles ex-escravizados ou seus afrodescendentes, se referiam dessa forma. Embora pesquisas mais recentes sugiram que o nome “Sítio Nhocuné” talvez seja anterior ao coronel mais famoso, essa origem popular grudou na identidade do bairro e faz parte do nosso imaginário.

O bairro começou a tomar forma urbana por volta de 1951, a partir do loteamento de terras do antigo sítio. Lembro-me das histórias dos mais velhos, de um tempo em que a água potável era artigo de luxo, e toda a comunidade se abastecia em uma única bica no largo da Igreja de Santa Terezinha. Eram as quermesses dessa igreja que, com suas festas e leilões, atraíam gente de fora, que acabava comprando um lote, construindo uma casa e fincando raízes. Nas décadas seguintes, especialmente nos anos 70, a rua Jordão da Costa foi durante muito tempo o nosso único espaço de socialização. Era o palco do futebol de calçada, da bolinha de gude, do pega-pega, do soltar balões quando ainda não era proibido, das rodinhas de conversa no portão. Era ali que a vida acontecia, livre e coletiva.

Mas nem tudo são memórias doces. Nos anos 1990, a quebrada que amávamos estampava os programas policiais, ganhando a fama de ser um dos lugares mais perigosos da capital. Foi um período duro, de estigmatização e medo. No entanto, a mesma força comunitária que ergueu o bairro a partir de uma única bica d’água mostrou sua resiliência.

Hoje, a Vila Nhocuné pulsa em coletivos, acolhimento e invenção. O maior símbolo dessa virada é o Centro Cultural Viela em Dia de Lua, um projeto que transformou uma degradada viela em um espaço cultural a céu aberto, com grafites, biblioteca comunitária e aulas de música. Os autores do projeto se definem como um “quilombo de afeto e resistência“, uma descrição perfeita para o espírito do lugar. A Vila Nhocuné, inclusive, façamos jus a linha do tempo, já havia sido antes mesmo de nós homenageada pelo grupo Nhocuné Soul, criado pelos meus amigos os irmãos Ronaldo e Renato Gama (exímios músicos, 100% orgânicos na criação de músicas, os melhores que eu conheço).

Essa trajetória de transformação, de pegar algo bruto e estigmatizado e, pela força da criatividade, transformá-lo em arte e acolhimento, é a metáfora perfeita para o que tentamos fazer no nosso projeto Nhocuné Music. Então, pegamos a matéria-prima da nossa vivência, a poesia, e a transformamos em música através de uma tecnologia disruptiva. O nome do projeto não é só uma homenagem; é a própria descrição do nosso método.

Suno

Nosso Estúdio Infinito

O coração do nosso processo criativo está na intersecção entre a palavra escrita à mão e a melodia gerada por algoritmos. Para transformar nossos poemas em canções, usamos principalmente o Suno, uma plataforma de Inteligência Artificial generativa. Para quem não está familiarizado, essas ferramentas funcionam como músicos virtuosos com um conhecimento enciclopédico. Elas são treinadas com vastos bancos de dados de músicas, aprendendo os padrões, estruturas, harmonias e ritmos de incontáveis gêneros. Ao receber um comando de texto, um prompt, a IA utiliza esse aprendizado para criar uma composição original que corresponda à descrição.

No nosso caso, o processo é um pouco diferente. Não pedimos à IA que crie letras. Nossas letras são orgânicas, pensadas e escritas por nós. Nós utilizamos o modo personalizado do Suno, onde inserimos nosso poema e, em seguida, descrevemos o universo sonoro que imaginamos para ele. É aqui que a mágica acontece.

Marcelo e eu, roqueiros de formação, nos divertimos ao ver a mesma letra sobre uma memória da Nhocuné render, em questão de segundos, um rock cru e direto, um samba de roda percussivo ou um reggae de levada roots. A versatilidade é estonteante. O Suno consegue navegar por uma gama imensa de estilos, de MPB e bossa nova a trap e música eletrônica, nos oferecendo uma paleta de texturas sonoras que seria impossível de explorar em um estúdio tradicional sem um custo e um tempo proibitivos.

Essa dinâmica cria uma ponte fascinante entre o ultra-local e o hiper-global. Nossas letras falam de um universo muito específico: não apenas das ruas, das memórias, mas dos sentimentos das pessoas de um bairro na periferia de São Paulo. A ferramenta que usamos para musicá-las, por outro lado, é uma tecnologia global, desenvolvida em outro país e alimentada por um repertório musical mundial. A IA não entende o que é a Vila Nhocuné, temos que treiná-la, mas ela entende os códigos do rock, a cadência do samba e o sentimento da saudade. Nesse sentido, o Nhocuné Music se torna um ato de tradução cultural, usando uma infraestrutura tecnológica global para amplificar e recontextualizar uma narrativa profundamente local.

Embora o Suno seja nosso motor principal, estamos sempre de olho no ecossistema que floresce ao nosso redor. Ferramentas como o Musicful.ai seguem uma lógica parecida, permitindo a criação de músicas completas e livres de royalties a partir de comandos simples. Outra plataforma impressionante é a ElevenLabs, que, além de ser uma gigante na geração de vozes sintéticas, lançou seu próprio modelo de música, o Eleven Music, focado em composições de alta qualidade e com uma estrutura clara para uso comercial, um ponto que ainda é sensível nesse meio. Estar ciente dessas alternativas nos mostra que essa revolução está apenas começando.

Vila Nhocuné

Arte, Autoria e a Disrupção Pós-Contemporânea

Em meio a toda essa revolução que a IA está trazendo ao mundo, a pergunta mais importante que nos fazemos é: onde fica a arte? Onde está a nossa assinatura? A resposta é simples: em tudo o que a máquina não pode fazer. A IA é uma ferramenta poderosa, uma alavanca para criar mais e melhor, mas não um atalho para a preguiça. A alma do Nhocuné Music reside naquilo que é intransferivelmente humano. Reside na letra, que nasce da nossa biografia. Reside na curadoria, no ato de escolher, entre as várias opções que o algoritmo nos dá, aquela que melhor traduz o sentimento do poema.

Nosso trabalho não termina quando apertamos o botão Criar. Pelo contrário, é aí que ele começa. Nós pilotamos esses modelos de IA. Dirigimos a intenção da voz, selecionamos os melhores takes, sugerimos mudanças nos arranjos, revisamos a mixagem. Cada uma dessas etapas é uma decisão estética, uma escolha que nenhuma IA pode fazer por nós, porque ela não tem uma história de vida como a que tivemos na Vila Nhocuné. Esse processo redefine o conceito de autoria. Não se trata mais apenas de compor a melodia ou tocar o instrumento. Em nosso laboratório público de canções, a autoria se manifesta na direção artística, no filtro pessoal que aplicamos ao potencial infinito da máquina. É uma autoria curatorial, onde nossa identidade está impressa nas escolhas que fazemos.

É por isso que a pergunta inicial — o que é o Nhocuné Music? — é tão pertinente. Os velhos rótulos de gravadora, selo ou banda não dão mais conta da realidade, pois descrevem uma divisão de trabalho da era industrial que a IA simplesmente implodiu. Estamos vivendo uma disrupção sem precedentes. Vemos o surgimento de artistas totalmente virtuais, como o grupo The Velvet Sundown, que enganou milhões de ouvintes, ou a cantora TaTa, do selo de A-pop (pop artificial) do produtor Timbaland. Vemos também as grandes gravadoras processando plataformas como o Suno por questões de direitos autorais sobre os dados de treinamento.

Mas o nosso caminho é outro. Não queremos usar a IA para substituir o humano, mas para expandir o alcance da nossa obra. Queremos usar esse poder para contar nossas histórias, não para reduzir a música a um ruído de máquina.

Dê o Play na Nossa Quebrada

No fim das contas, o Nhocuné Music é o som da nossa memória encontrando a melodia do algoritmo. É a crônica da nossa quebrada sendo contada em uma linguagem universal. Nasceu da nossa inquietação e da certeza de que, mesmo em tempos de mudanças tão radicais, ou talvez por causa deles, razões não nos faltam para continuar fazendo e ouvindo música.

Cada faixa que publicamos é um convite para um passeio sonoro por esse território que é, ao mesmo tempo, físico e afetivo. É a nossa forma de dizer que a tecnologia pode mudar os instrumentos, mas o norte da canção continua sendo o coração humano.

Quer ouvir o que estamos aprontando? Dá o play no canal e vem pra quebrada com a gente.

https://www.youtube.com/@NhocunéMusic

Ednei Procópio e Marcelo Roque
Ednei Procópio e Marcelo Roque

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