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A História da Primeira Gravadora do Brasil

No Rio de Janeiro da virada do século XIX para o XX havia uma efervescência cultural muito vista no país de sua época, mas historicamente pouco registrada. Surgiam novos espaços de lazer – cinemas, teatros, cafés-concerto, casas de chá e circo – e chegavam músicos, produtores e espetáculos estrangeiros.

A cidade do Rio de Janeiro era o ambiente mais cosmopolita do país, a cidade brasileira em que a diversidade de ritmos musicais era mais intensa. Nesse cenário de novidades e trocas rápidas, a técnica de gravação sonora acabava de desembarcar no Brasil, criando as bases de um novo mercado musical.

O fonógrafo de Thomas Edison (1877) e o gramofone de Emile Berliner (1887) prometiam alterar para sempre a forma de ouvir e consumir música, permitindo levar canções para dentro de casa e compartilhá-las em família.

Friedrich Figner (1866-1947)
Friedrich Figner (1866-1947)

Frederico Figner e o fonógrafo

Frederico Figner (nascido Friedrich Figner, 1866-1947) era um empreendedor imigrante vindo dos Estados Unidos, onde conheceu as novidades tecnológicas da época. Seu primeiro contato com o fonógrafo foi em 1889, no Texas, com um cunhado que lhe mostrou a máquina falante de Edison. Já naturalizado americano, Figner resolveu trazer o fonógrafo ao Brasil: em agosto de 1891 desembarcou em Belém (PA) com fonógrafos da Pacific Phonograph Company, além de cilindros virgens, baterias e peças de reposição.

Aqui, Figner gravou os primeiros sons brasileiros em cilindros – discursos, lundus, modinhas e operetas – direto do Hotel Central onde estava hospedado. Depois exibiu o resultado: em apenas um mês reuniu cerca de 4 mil pessoas pagantes (1.000 réis cada) para ouvir as repetidas execuções das gravações. Empolgado com a recepção, Figner saiu em turnê pelo Norte e Nordeste – percorreu cidades como Manaus, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife e Salvador mostrando o fonógrafo e suas gravações ao público.

Em abril de 1892, aos 26 anos, Figner chegou ao Rio de Janeiro com suas máquinas falantes, mas teve de continuar a turnê pelo interior devido a uma epidemia de febre amarela na capital. Seguiu mostrando o fonógrafo em São Paulo, Campinas, Porto Alegre e Pelotas, e até no exterior: viajou a Montevidéu e Buenos Aires.

Em 1896, de volta ao Brasil, ampliou ainda mais suas novidades: além do fonógrafo, passou a comercializar o cinetoscópio (uma máquina de imagens animadas) e lançou um kinetofone, um precursor do cinema falado que mesclava som e imagem. Em suma, Figner atuava como um verdadeiro embaixador das inovações tecnológicas: introduzia brinquedos de Edison, Berlioz e outros inventores na vida cultural brasileira, prevendo que esses produtos modernos renderiam bons negócios na capital federal.

Convidados, representantes da imprensa e o pessoal da casa. Grupo tirado a 4 de julho de 1905 (sic) por occasião da inauguração. A Casa edison funccionava ha largos annos á mesma rua n. 109 e foi a introdutora do artigo phonographico no Brasil. Tem grande deposito de Zonophones, Phonographos, machinas de escrever, de costura, e photographicas. É a unica casa que possue Records (chapas) com execuções de bandas e modinhas nacionaes.
“Convidados, representantes da imprensa e o pessoal da casa. Grupo tirado a 4 de julho de 1905 (sic) por occasião da inauguração. A Casa edison funccionava ha largos annos á mesma rua n. 109 e foi a introdutora do artigo phonographico no Brasil. Tem grande deposito de Zonophones, Phonographos, machinas de escrever, de costura, e photographicas. É a unica casa que possue Records (chapas) com execuções de bandas e modinhas nacionaes.”

Fundação da Casa Edison

Com a experiência de vendas e demonstrações de fonógrafos, Figner abriu em 1900 uma loja no Rio de Janeiro (Rua do Ouvidor, 107) vendendo equipamentos de escritório e fonógrafos – ele batizou o negócio de Casa Edison em homenagem ao inventor americano. Nesse início, a Casa Edison importava e revendera cilindros de cera e discos (de Berliner) fabricados na Alemanhã. Até então, o público brasileiro só tinha acesso a gravações estrangeiras. Para aumentar as vendas, em 1902 Figner teve uma ideia ousada: convidou artistas brasileiros para gravar fonogramas locais.

Figner ofereceu a Cadete (Antonio Costa Moreira) e a Bahiano (Manuel Pedro dos Santos) uma remuneração de mil réis por cilindro, para registrar músicas brasileiras na Casa Edison. Pouco depois, juntou-se ao grupo o palhaço e cantor Eduardo das Neves (Dudu), famoso por seus lundus e sambas. Assim, o pioneirismo fonográfico de Figner se ampliava: ele não só divulgava os aparelhos de gravação, mas começava a formar o público brasileiro para ouvir música gravada.

Em 1902 a Casa Edison publicou seu primeiro catálogo de produtos e estudos indicavam que naquele momento ela era a única fábrica na América do Sul para fabricação de cilindros. Mais importante: no mesmo ano a empresa viabilizou as primeiras gravações sonoras brasileiras. A loja, até então vendedora de fonógrafos, transformava-se na primeira gravadora do país. Hoje reconhece-se a Casa Edison como “a primeira casa gravadora no Brasil e na América do Sul, fundada em 1900 por Frederico Figner”.

Panfleto Casa Edison
Panfleto Casa Edison

Os primeiros discos brasileiros

Entre 1902 e 1903 a Casa Edison lançou vários cilindros com músicas gravadas no Rio. Destacaram-se três registros históricos:

  • “Isto É Bom” (Xisto Bahia, 1902) | Um lundu composto pelo baiano Xisto Bahia, gravado na voz de Bahiano. É considerado o primeiro disco de música brasileira lançado no país (selo Zon-O-Phone nº 10001). Na ocasião, a canção estreou no Carnaval do Rio de 1902 e logo figurou no catálogo da Casa Edison como exemplar de música nacional.
  • “Um Samba na Penha” (Assis Pacheco/Mário Pinheiro, 1904) | Cançoneta da revista Avança! (1903), gravada pela cantora Pepa Delgado e regida por Mário Pinheiro. Embora não fosse o primeiro samba da história, foi o primeiro disco a usar o termo “samba” no título e o primeiro a ser gravado. Encontrado décadas depois nos arquivos da Casa Edison, o cilindro nº 10.063 comprovou que “Um Samba na Penha” foi gravado em 1904, treze anos antes de Pelo Telefone. Essa descoberta só foi noticiada em 1974, quando a revista Veja repercutiu o achado de Maurizio Quadrio num artigo especial.
  • “Pelo Telefone” (Donga/Mauro de Almeida, 1917) | Maxixe-samba composto por Ernesto “Donga” dos Santos e Mauro de Almeida, gravado por Bahiano. Foi o primeiro grande sucesso de samba do país, lançado no Carnaval de 1917. Embora receba crédito oficial a Donga e Mauro, pesquisas posteriores mostraram que Donga adaptou para essa música um verso criado pelo compositor popular Mestre Germano. Em documentos do Instituto Moreira Salles, Donga declarou que Germano lhe dera a primeira estrofe de “Pelo Telefone” (letra e melodia), confirmando o caráter colaborativo da criação.

Essas gravações iniciais formavam um repertório diversificado: predominavam lundus, modinhas e valsas, estilos então em voga. Nos primeiros catálogos da Casa Edison aparecem ainda polcas, mazurcas, tango e dobrados – obras de autores nacionais e estrangeiros. A estreia de “Um Samba na Penha” e, mais tarde, de “Pelo Telefone” preparou o terreno para a explosão do samba no Brasil, mas outros gêneros também floresciam através dos cilindros.

PEPA DELGADO Caracterizada de Baiana
PEPA DELGADO Caracterizada de Baiana

Artistas pioneiros da Casa Edison

Vários nomes surgiram ou se firmaram graças às gravações da Casa Edison. Dentre eles:

  • Manuel Pedro “Baiano” dos Santos | Ex-palhaço de circo e vocalista carismático, Baiano gravou “Isto É Bom” (1902) e é ainda mais lembrado por interpretar “Pelo Telefone” (1917). Sua voz potente e teatral ajudou a tornar essas canções emblemáticas. Baiano foi um dos cantores profissionais contratados em exclusividade por Figner e compôs o primeiro quadro de intérpretes da Casa Edison.
  • Cadete (Antônio da Costa Moreira) | Cantor popular do Rio, foi convidado por Figner para gravar, junto com Baiano, os primeiros fonogramas brasileiros. As datas exatas de suas gravações iniciais são difíceis de documentar, mas ele integrou o mesmo grupo pioneiro de Bahiano e Dudu.
  • Eduardo “Dudu” das Neves (1895-1919) | Ex-palhaço e cantor de circo, Dudu fez história como um dos primeiros grandes intérpretes do país. Tornou-se ícone ao gravar dezenas de lundus, modinhas e sambas na Casa Edison. Segundo o Instituto Casa do Choro, ele foi “uma das figuras mais populares” do início do século e “um dos pioneiros a gravar discos no Brasil”, chegando a fazer vozes cômicas em suas músicas. Dudu também compôs, como o lundu-manifesto “Homenagem a Santos Dumont (A conquista do ar – A Europa curvou-se ante o Brasil)”, lançada em 1902 (gravada por Baiano) e reverenciada em serenata pública ao inventor em 1903. Desse modo, ele foi testemunha ativa das primeiras manifestações nacionais na MPB.
  • Mário Pinheiro (1880-1923) | Baixista lírico de formação erudita (cantava em óperas europeias), Pinheiro foi o principal locutor dos discos da Casa Edison e um dos primeiros contratados fixos por Figner. Ele gravou o repertório mais extenso da época (de 1902 até 1919) para selos como Odeon e Victor Record, incluindo canções populares e modinhas. Em seu catálogo figuram sucessos como “O Boêmio” (Anacleto de Medeiros/Catulo da Paixão Cearense), “Clélia” (Luís de Sousa/Catulo) e até o próprio lundu “Isto É Bom”. Sua dicção impecável lhe deu também função de apresentador das faixas nos discos.
  • Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) | Poeta e letrista renomado, Catulo não era contratado pela Edison, mas sua obra circulou pelos discos da Casa. Ele colaborou com compositores populares – por exemplo, escreveu letras em parceria com Anacleto de Medeiros, Luís de Sousa e João Pernambuco. Muitas de suas modinhas surgiram gravadas pela Casa Edison: além de “O Boêmio” e “Clélia” (citados acima), seu nome aparece em registros de canções populares e de Teatro de Revista. Catulo, que sonhava modernizar a modinha erudita, assim encontrou nas gravações de Figner um veículo para atingir o grande público.

Esses artistas (e outros como o compositor Pixinguinha, ainda jovem arranjando orquestras da Casa Edison) deram corpo humano à empreitada fonográfica. Figner percebeu desde cedo que precisava profissionalizar a música popular, contratando cantores experientes em apresentações ao vivo e até palhaços como Dudu, que davam espetáculo vocal nas gravações.

A primeira gravadora do Brasil nasceu na Rua do Ouvidor
A primeira gravadora do Brasil nasceu na Rua do Ouvidor

Gravações mecânicas: desafios técnicos

As primeiras gravações da Casa Edison foram feitas de modo 100% mecânico, sem eletricidade. O processo exigia habilidade e até acrobacias: o cantor tinha de gritar na boca de um enorme corneta de gravação, com a cabeça muito próxima da cápsula de cera. O técnico de som, por sua vez, empurrava o cantor para mais perto (notas graves) ou puxava-o para longe (notas agudas), a fim de evitar distorções.

Em gravações de conjuntos e orquestras, os músicos amontoavam-se diante do mesmo microfone rudimentar, equilibrando os volumes no espaço. Depois de concluída a sessão, o cilindro de cera era enviado para a Alemanha (onde a Casa Edison tinha a fábrica parceira) e retornava meses depois transformado em disco gravado dos dois lados.

Em 1904, o sistema começou a mudar: o gramofone de Émile Berliner (com discos de cera prensados e agulha de mica) apareceu no mercado. Figner rapidamente obteve da International Zonophone Company o direito de fabricar aqui esses discos prensados. Surgiram então as primeiras séries brasileiras de disco de vinil, como as coleções Zon-O-Phone 10.000 e X-1000 (Zonophone).

O registro do som continuou totalmente acústico até a década de 1920. Isso significa que todas as músicas gravadas na Casa Edison até 1927 – incluindo os 40 mil títulos que chegaram a ser lançados – foram feitas no esforço físico da Rua do Ouvidor, 107. O resultado foi um som tinhoso e cheio de ruído, mas que revolucionava a experiência: pela primeira vez, um ouvinte podia ouvir fado à capela, maxixe ou marcha executados em outro lugar, longe do tempo original de produção.

Chegada da gravação elétrica e fim da Casa Edison

Em 1925-1927 surgiu a gravação elétrica, que usava microfones e amplificadores, melhorando muito a qualidade. No Brasil, o pioneiro desse sistema foi Francisco Alves, que em 1927 gravou na Odeon (parceira do grupo Figner) as primeiras faixas elétricas.

No entanto, a nova técnica também mudou a dinâmica do mercado. Em 1930, a matriz holandesa Transoceanic (dona da Odeon/Odeon Records) obrigou Figner a vender toda a Casa Edison, assumindo o controle da produção de discos no Brasil. A gravadora de Figner permaneceu ativa em outras áreas, mas abandonou definitivamente o fonógrafo: passou a vender máquinas de escrever e mimeógrafos e encerrou suas atividades na indústria musical por volta de 1932.

Mesmo antes disso, o revés já havia começado: no fim de 1926, a Casa Edison perdeu a representação exclusiva da Odeon e em 1927 mudou seus lançamentos para o selo Parlophone. Sem capacidade de modernizar suas instalações (Figner era relutante em investir em gravação elétrica), a antiga pioneira não resistiu à concorrência das multinacionais com fábricas locais (Columbia, RCA Victor, Odeon etc.).

A Casa Edison cumpriu seu ciclo: de 1902 a 1927 foi a locomotiva da indústria fonográfica brasileira, criando o repertório inicial da MPB; ao final de 1930 já não gravava mais música.

O Pai da MPB
O Pai da MPB

Legado do pai da MPB

O impacto de Frederico Figner e da Casa Edison na música popular brasileira foi profundo. Graças a Casa criada por Figner, gêneros tradicionais foram preservados e difundidos: lundus, polcas, fados e, sobretudo, os primeiros sambas ganharam registros duradouros. Sem a Casa Edison, muitas composições desse período teriam se perdido.

Historicamente, essa fase de 1902-1930 é reconhecida como a etapa heroica da gravação de discos no Brasil. São mais de 40 mil títulos lançados em 28 anos, abrindo caminho para toda a indústria sonora que viria depois.

Não é exagero afirmar que Frederico Figner merece o título informal de “Pai da MPB”. Ele foi o primeiro a enxergar que a música popular brasileira tinha não só valor comercial mas sobretudo valor cultural, investindo em estúdios, artistas e publicidade para profissionalizá-la. Trouxe novos públicos ao hábito de ouvir música gravada e democratizou o acesso a canções brasileiras.

Figner ainda fundou a primeira fábrica de discos nacional (a Odeon, em 1913, no Rio). Toda sua história configura um legado pioneiro: graças a ele, nossa música começou a chegar aos lares, gravada em massa pela primeira vez.

A trajetória de Figner e da Casa Edison, portanto, é parte fundamental da memória da MPB. Registros da época – desde anúncios de jornais que promoviam as máquinas falantes até catálogos comerciais da Casa Edison – atestam o entusiasmo do público com a novidade. Algumas canções, como “Isto É Bom” ou “Pelo Telefone”, entraram para o folclore nacional.

Historiadores reafirmam que sem aqueles cilindros e discos iniciais a música popular brasileira não teria se desenvolvido tão cedo. A casa fonográfica de Figner marcou a etapa heroica do processo de gravação no Brasil. É por isso que Figner é lembrado como pioneiro e que o legado da Casa Edison é venerado: ambos deram voz, literalmente, à produção musical do país.

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