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O Mercado de Livros no Feudalismo Digital

Durante a Alta Idade Média, o livro era um artefato raro e precioso, restrito a poucos. Nos mosteiros, manuscritos imensos de pergaminho adornado a ouro ficavam literalmente acorrentados aos pupitres – símbolo físico de como o conhecimento era guardado zelosamente por uma elite religiosa.

Cada exemplar consumia meses ou anos de trabalho de monges copistas e tinha um valor altíssimo, comparável ao preço de uma propriedade rural. Esse esforço concentrado refletia o caráter sacro do livro medieval: produzido em ambiente monástico, por devoção e não por lucro, e considerado um tesouro espiritual mais do que uma mercadoria.

No coração de cada mosteiro havia um scriptorium, a fábrica silenciosa do saber medieval. Nesse local austero e metódico, monges copiavam textos à mão, em silêncio rigoroso para evitar erros, sob supervisão do armarius – o monge bibliotecário que distribuía todo o material necessário: pergaminho tratado, penas, tintas e os códices a serem duplicados.

Produzir um livro era um empreendimento coletivo: os monges precisavam criar seus próprios pergaminhos (criavam rebanhos de ovelhas e cabras para obter peles), fabricar tintas com pigmentos naturais e executar todas as etapas, do preparo do couro à encadernação. Todo esse processo artesanal intenso explica por que os livros eram tão escassos e caros – manter um scriptorium produtivo era sinal de enorme riqueza e poder institucional, dada a quantidade de recursos investidos.

O pergaminho em si era valioso: fabricar uma única folha exigia dias de trabalho (imersão das peles em cal, esticamento, raspagem, polimento) e, por isso, reciclar pergaminhos antigos era prática comum (raspando textos obsoletos para reutilizar o material, criando palimpsestos). Copiar textos era, além de tarefa intelectual, um ato de fé – os monges acreditavam reproduzir a palavra divina, dedicando-se com paciência e esmero quase litúrgico a cada manuscrito iluminado.

Não existia um mercado de livros aberto nesse feudalismo tradicional. Os livros circulavam de forma restrita: ficavam nas bibliotecas dos próprios mosteiros, eram trocados entre instituições religiosas ou produzidos sob encomenda para patronos riquíssimos. Reis, nobres ou bispos encomendavam manuscritos luxuosos como símbolo de poder, erudição e piedade – verdadeiras obras de arte que conferiam prestígio a seus donos.

O valor de um livro não dependia de oferta e demanda, mas do renome de seu patrono e da riqueza artística da cópia; a transação era menos comercial e mais poder simbólico. Esse modelo pré-capitalista, de produção devocional sob patronato, dominou até meados do século XII e formou o pano de fundo sobre o qual ocorreria uma revolução comercial no mundo dos livros.


A partir do século XII, com o surgimento das primeiras universidades em centros urbanos (Paris, Bolonha, Oxford etc.), explodiu a demanda por livros de referência. De repente, não eram mais apenas monges isolados estudando em claustros – centenas de estudantes e professores precisavam de cópias de textos de teologia, direito, medicina e filosofia para estudo simultâneo. O modelo monástico, lento e artesanal, não dava conta dessa fome de livros. A resposta foi o nascimento de uma nova indústria livreira laica nos bairros ao redor das universidades. Surgiram oficinas comerciais de copistas profissionais, iluminadores, encadernadores e vendedores de livros – pessoas que já trabalhavam por salário, não pela salvação da alma.

A inovação que tornou viável essa produção em escala foi o sistema pecia: as universidades mantinham uma cópia-mestre autorizada de cada obra (o exemplar) sob custódia de um livreiro licenciado, chamado stationarius. Esse livreiro dividia o texto em fascículos (as peciae), que podiam ser alugados por diferentes escribas ao mesmo tempo para cópia. Vários copistas produziam partes diferentes do livro em paralelo – um tipo de linha de montagem medieval que multiplicou a velocidade de produção de exemplares completos.

O stationarius tornou-se o pivô desse nascente comércio: além de gerir o aluguel de peciae, ele encomendava cópias extras de obras populares e fomentava um mercado secundário de livros usados. Pela primeira vez, o livro virou uma mercadoria: seu preço passou a ser ditado pela procura, pela qualidade da cópia e pelos custos de material e mão de obra, não apenas pelo valor simbólico.

A introdução gradual do papel (mais barato que o pergaminho) também reduziu os custos, facilitando o acesso dos estudantes aos textos. Culturalmente, essa transição marcou a dessacralização do livro – de objeto único e sagrado, o códice fragmentou-se em partes intercambiáveis; o conteúdo intelectual (o texto) desligou-se um pouco do suporte físico. O conhecimento tornou-se algo que podia ser copiado, compartilhado e comercializado em unidades menores, um prenúncio de como viríamos a encarar a informação nos séculos seguintes. Não por acaso, por volta de 1300 a produção monástica entrou em declínio – os monges não conseguiam competir em velocidade e volume com as oficinas laicas urbanas.


No século XV, a evolução do mercado de livros atinge um clímax com a invenção da prensa de tipos móveis de Johannes Gutenberg. A prensa tipográfica (c. 1450) foi um salto tecnológico extraordinário que mecanizou a produção de livros. Em vez de copiar à mão um exemplar por vez, tornou possível imprimir centenas de cópias em poucos meses – uma mudança de escala sem precedentes. O impacto foi avassalador: menos de 50 anos após a invenção, já havia tipografias em mais de 230 cidades europeias, e entre 15 e 20 milhões de livros impressos circulando.

Para comparar: antes de Gutenberg, estimam-se apenas alguns milhares de manuscritos em toda a Europa. A palavra antes restrita enfim tornou-se acessível em massa. Esse aumento não foi só quantitativo, mas também qualitativo: a impressão trouxe padronização do texto (cada leitor, em países distintos, podia ler exatamente a mesma versão de uma obra) e inaugurou a era da informação replicável com fidelidade. O livro se transformou definitivamente em um produto comercial e laico, e o conhecimento pôde se espalhar muito além dos muros eclesiásticos.

As consequências foram revolucionárias: alimentaram a Reforma Protestante (espalhando novas ideias religiosas rapidamente), impulsionaram a colaboração científica pan-europeia (já que resultados podiam ser reproduzidos e compartilhados amplamente) e, ao longo dos séculos seguintes, elevaram as taxas de alfabetização.

Passamos da palavra acorrentada no mosteiro à palavra libertada pela prensa, estabelecendo as bases do mundo moderno. Conhecimento antes exclusivo da Igreja tornou-se público e multiplicou-se, preparando terreno para as disputas de ideias que definem até hoje a nossa sociedade. O feudalismo tradicional do livro, centrado na devoção e no controle eclesiástico, cedeu lugar a uma produção laica, comercial e massificada – um verdadeiro prelúdio da democratização da informação.

O mercado editorial no feudo digital

O conceito atual de feudalismo digital

Avancemos para o presente, onde alguns pensadores argumentam que entramos em um contexto de neofeudalismo tecnológico. O economista grego Yanis Varoufakis, por exemplo, propõe que o capitalismo, como sistema dominante, já teria sido substituído por um tecnofeudalismo do século XXI (embora haja ideias de contra-ponto). Nesse modelo proposto por Varoufakis, não são mais a terra ou as fábricas o principal ativo, mas as plataformas digitais e os dados – o que ele chama de capital-nuvem.

Grandes corporações de tecnologia – pense em Amazon, Google, Meta (Facebook), Apple – controlam vastas infraestruturas online (servidores, algoritmos, redes sociais, marketplaces) que se tornaram essenciais para a economia e para a circulação de informação. Esse capital-nuvem ascendeu aos céus: é intangível e omnipresente, e sua função não produz bens, ou seja, esse capital produz na verdade bens imateriais, bens simbólicos ou bens intangíveis, mas não bens no sentido da produção; e apenas molda o comportamento de usuários e consumidores, colhendo dados a cada clique e visualização.

De qualquer maneira, Varoufakis faz um paralelo explícito interessante com o feudalismo clássico. Para ele, as Big Tech formam feudos digitais – ambientes fechados nos quais elas reinam como senhorios. Entrar na Amazon.com, por exemplo, não é entrar num mercado livre, e sim no feudo de Jeff Bezos, onde ele atua como um suserano que não só fica com uma parcela de cada venda (uma renda, e não um lucro), mas também dita, via algoritmos, o que pode ser vendido e o que os consumidores conseguem ver.

Em vez de uma concorrência em pé de igualdade (e não existe concorrência em pé de igualdade no capitalismo; só existe concorrência mesmo) temos um poder concentrado que extrai pedágios de todos que operam em seus domínios digitais.

A lógica econômica muda: se no capitalismo tradicional o motor era o lucro obtido pela produção e competição, no tecnofeudalismo o motor é a renda extraída pelo controle de um ecossistema fechado – isto é, cobrar pelo acesso e intermediação. Quem antes era um empreendedor buscando lucro agora se vê pagando tributos ao dono da plataforma, quase como um vassalo pagando taxas ao senhor feudal. O capitalista tornou-se um inquilino no feudo alheio.

Nesse contexto, surge uma nova hierarquia social espelhando a feudal. No topo estão os Tecno-senhores ou cloudalistas: os proprietários do capital-nuvem, os donos das plataformas e algoritmos – por exemplo, Bezos, Zuckerberg, Musk. Eles controlam os terrenos digitais e cobram pedágio de quem os utiliza. Logo abaixo vêm os vassalos capitalistas: empresas menores e negócios tradicionais que dependem dessas plataformas para alcançar clientes. Ainda buscam lucro, mas precisam submeter-se às regras dos tecno-senhores e entregar a estes uma fatia – seja em taxas de loja de aplicativos, comissões de venda online, gastos obrigatórios com publicidade digital, etc..

Na base dessa pirâmide estão os servos da nuvem: a multidão de usuários comuns e criadores de conteúdo, cuja atividade diária nas plataformas se tornou trabalho não remunerado que enriquece os senhores. Assim como os camponeses medievais lavravam as terras do senhor, hoje cada vez que rolamos o feed de uma rede social, curtimos uma postagem ou contribuímos com conteúdo, estamos gerando dados e engajamento – a nova corveia digital – que alimenta os algoritmos e gera valor para as Big Tech.

O resultado é que criadores de conteúdo e pequenos produtores se veem numa condição de vassalos digitais. Pense em um youtuber, um escritor autopublicado ou um influenciador no Instagram: eles constroem seu império de seguidores e conteúdo, mas não são donos do terreno onde erguem tudo isso. Seu canal ou perfil é como um lote arrendado dentro da vasta propriedade digital de outrem. O criador investe trabalho criativo para cultivar audiência e produzir obras (vídeos, textos, posts), agregando valor à plataforma. Entretanto, tudo ali – a terra e a colheita – pertence em última instância ao dono da plataforma (Google/YouTube, Meta/Instagram, Amazon/Kindle etc.).

Toda essa dependência estrutural fica clara quando lemos os Termos de Serviço, o contrato de adesão que raramente alguém lê por completo: ali a plataforma estipula o que pode ou não ser publicado, quem fica com qual fatia da renda gerada e, crucialmente, reserva-se o direito de mudar as regras unilateralmente sempre que quiser. Não por acaso, plataformas como YouTube vivem alterando políticas de monetização ou alcance, deixando os criadores em permanente estado de incerteza e medo de infringir alguma nova regra opaca.

No feudo digital, há também um senhor invisível governando: o algoritmo. É ele quem decide quais conteúdos serão amplificados e quais ficarão ocultos no imenso mar da internet. Suas leis são veladas e volúveis – critérios que mudam constantemente e não são divulgados, impondo aos criadores um ciclo interminável de tentar decifrar o algoritmo para não perder relevância. Tal qual anuncia Karl Marx quando trata do fetichismo da mercadoria e a anuncia como uma categoria fantasmagórica.

Fenômenos como o shadow banning (quando seu conteúdo passa a ser silenciosamente suprimido do feed alheio) ou a desmonetização súbita de um vídeo/canal são as novas formas de punição feudal: repentinas, inexplicáveis e sem direito de apelação transparente. Um criador pode ver seu sustento evaporar da noite para o dia por decisão algorítmica obscura, reforçando seu lugar precário no sistema. Essa tirania algorítmica força os produtores de conteúdo a continuamente ajustar seu comportamento – frequência de postagens, duração dos vídeos, temas trend – ao que agradece o senhor-plataforma, sob pena de passar fome (isto é, perder visibilidade e renda).

Outro aspecto central desse tecnofeudalismo é que a monetização virou um privilégio condicional, não um direito garantido. As plataformas propagam o discurso de economia dos criadores, mas, na prática, ninguém ganha dinheiro sem a anuência do senhor da nuvem. Os variados modelos de receita – participação em anúncios, assinaturas de fãs, doações, fundos de incentivo – são todos mediadas pela plataforma, que fica com uma parte significativa do valor e estabelece metas e restrições para liberar pagamentos.

Um youtuber, por exemplo, só monetiza se seguir as diretrizes do YouTube (e pode ter vídeos desmonetizados por qualquer deslize interpretativo dessas regras); um autor vende eBooks na Amazon, mas a Amazon define a taxa que ele recebe e pode bloquear o livro se violar alguma política de conteúdo. Muitos criadores vivam na incerteza financeira: uma pesquisa citada por Varoufakis aponta que metade dos criadores de conteúdo ganha menos de R$500 por mês, e quase um quarto não consegue ganhar nada – apesar de trabalharem horas criando material para as plataformas. Basta a plataforma mudar um algoritmo de recomendação ou encerrar um programa de remuneração para que uma fonte de renda desapareça. O sonho de uma autonomia financeira digital pode virar um pesadelo de instabilidade.

Nesse sistema, o criador ocupa uma posição paradoxal e de dupla exploração. Varoufakis descreve que o criador é um vassalo e um servo ao mesmo tempo.

Por um lado, recebe um arrendamento do feudo (seu canal, sua página, sua vitrine na Amazon) para gerir e gerar algum rendimento (igual no feudalismo histórico, ou seja, o servo recebia um pedaço de terra arrendada; ele produzia naquela terra e uma pequena parte ficava para ele e a maior parte ia para o senhor feudal), do qual deve entregar uma parcela ao senhor (seja a comissão de 30% das vendas de apps, os 45% da receita publicitária que o YouTube retém, ou os 30% que a Amazon leva de cada eBook vendido).

Por outro lado, é servo, pois seu trabalho criativo – vídeos, textos, arte – e os dados gerados por sua audiência são a matéria-prima que enriquece a plataforma. Todo esse engajamento e produção de dados não remunerados constituem a corveia da nuvem, trabalho gratuito que aperfeiçoa o principal ativo do senhor: o algoritmo.

O criador digital acaba acumulando as funções de um empreendedor (precisa gerenciar conteúdo, marca pessoal, estratégia) com as de um trabalhador precarizado (fornecendo labor intelectual exaustivo, frequentemente sem proteção trabalhista ou garantias). Ele cai no moderno mito do empreendedorismo e recebe em troca apenas uma fração do valor que gera e sem qualquer segurança de continuidade. Essa é a essência da teoria tecnofeudal: uma economia centrada na extração de renda pelos donos das plataformas, onde os demais participantes vivem de concessões revogáveis.

O impacto de todo esse processo na produção de conteúdo digital é profundo. Em vez de termos uma categoria de criadores plenamente independentes e inovadores, vemos profissionais em situação frágil, reféns de algoritmos e termos de serviço. E a classe a que pertencem é a mesma dos demais que não são donos das Big Techs.

A necessidade de agradar ao algoritmo muitas vezes define o quê e como criar: no YouTube ou TikTok, formata-se o conteúdo para otimizar cliques e retenção; escritores buscam tópicos vendáveis que o marketplace da Amazon favorece; artistas no Instagram precisam seguir tendências para serem exibidos nos feeds.

A servidão algorítmica inibe a criatividade mais experimental e favorecer fórmulas repetitivas que performam bem nas métricas. O ambiente de competição por visibilidade – alimentado por métricas em tempo real – gera um nível de pressão e ansiedade entre criadores que já é comparado a um feudo onde todos trabalham demais com medo da irrelevância (uma das características da economia da atenção). Relatos de burnout são comuns: o algoritmo pune a inatividade, então muitos se sentem obrigados a produzir conteúdo incessantemente para não desaparecer do feed do público.

Sob o tecnofeudalismo das plataformas das Big Techs, o ato de criar se tornou inseparável de navegar estruturas de poder invisíveis. A liberdade prometida pela internet convive com novos grilhões digitais – invisíveis, porém eficientes em controlar quem alcança audiência e como pode monetizar seu trabalho.

O conceito atual de feudalismo digital

O mercado editorial no feudalismo digital

Traçando um paralelo entre os dois contextos: se na Idade Média o conhecimento estava confinado aos mosteiros, hoje ele está aprisionado pelas grandes plataformas. O mercado de livros contemporâneo – especialmente a parte digital – se insere claramente nesse modelo tecnofeudal. Autores e editoras tornaram-se dependentes de feudos digitais para produzir, divulgar e vender seus livros. Plataformas como Amazon (Kindle), a rede social literária Wattpad, o Google Play Books, ou mesmo as redes sociais genéricas (Facebook, Instagram, TikTok) atuam como os novos senhores de terras onde os livros circulam.

O caso da Amazon é emblemático. Hoje, para um autor ou mesmo para muitas editoras, estar no feudo Amazon é quase obrigatório – é lá que estão os leitores em escala global. Mas significa aceitar as regras impostas pelo senhor feudal Jeff Bezos e sua companhia. A Amazon controla não apenas a loja, mas a vitrine que cada livro terá: seus algoritmos determinam se um título aparecerá nas recomendações, nas listas de mais vendidos ou se ficará oculto nas profundezas do catálogo.

Muitos autores descrevem o algoritmo da Amazon como um tipo de maldição inexpugnável, que eles tentam decifrar às cegas para ganhar visibilidade. Como no YouTube, existem táticas para agradar ao sistema: escolher categorias menos concorridas para ranquear melhor, incentivar resenhas e avaliações positivas (há escritores que chegam a implorar por reviews dos leitores), investir em palavras-chave e até pagar por anúncios dentro da própria Amazon para destacar seus livros. Os mais bem-sucedidos nem sempre são os melhores escritores, mas sim os melhores marqueteiros digitais – aqueles que dominaram o jogo de manipular o ranking e as promoções. A descoberta de um livro digital hoje é mediada por algoritmos opacos, tal qual a descoberta de um vídeo ou post nas redes sociais.

Mesmo em plataformas específicas de literatura como a Wattpad o padrão se repete: quem define quais histórias ganham destaque e quais permanecem às sombras é um algoritmo que leva em conta dados de leitura e engajamento, segundo critérios pouco transparentes. A datificação da leitura e da escrita faz com que a visibilidade de um texto seja personalizada e impulsionada conforme tendências de mercado e preferências capturadas de usuários, todo esse processo serve ao modelo de negócios da plataforma.

Para o escritor, resta tentar domar essas ferramentas: publicar com frequência para mostrar atividade, usar tags e categorias que o sistema valoriza, mobilizar leitores para que interajam (comentando, votando em capítulos, etc.) – esforços que lembram um artesão medieval buscando patronos, mas agora direcionados a agradar um sistema automatizado.

Além da batalha pela atenção, há a questão das condições impostas pelos termos de uso nesses feudos literários. Na Amazon Kindle Direct Publishing (KDP), por exemplo, um autor que queira participar do programa Kindle Unlimited (onde leitores pagam uma assinatura e podem ler à vontade) precisa aceitar a exclusividade – seu eBook não pode ser vendido em nenhuma outra loja ou site. É um contrato de vassalagem digital: em troca de potenciais leituras e de uma fatia do fundo global que a Amazon distribui, o autor abre mão da liberdade de distribuir sua obra fora do feudo Amazon.

Mesmo para editoras tradicionais, a Amazon dita regras duras de desconto, preço e logística para que seus livros tenham destaque na plataforma. Caso alguém descumpra as políticas, as sanções são unilaterais: a Amazon pode remover um livro por violar diretrizes (conteúdo impróprio, suspeita de manipulação de reviews, ou mesmo razões nunca esclarecidas publicamente) – um deplatforming editorial que lembra aqueles criadores de conteúdo que perdem suas contas sem explicações claras.

Assim como no feudalismo medieval a Igreja decidia quais textos eram permitidos ou proibidos (basta lembrar do Index Librorum Prohibitorum na época pós-Gutenberg), hoje a Amazon e outras plataformas possuem o poder de censura e moderação sobre o que é comercializado em seus domínios. Se um autor publicar algo que fira as regras da comunidade da loja, pode ver sua obra banida e sua renda desaparecer, sem muita transparência ou possibilidade de recurso.


No tocante à monetização e repartição de ganhos, os escritores e editoras também experimentam a economia de tributos típica do tecnofeudalismo. A Amazon fica, em geral, com 30% a 65% do preço de capa de cada eBook vendido (os autores recebem 70% apenas se cumprirem uma série de condições, incluindo preço dentro de uma faixa determinada; caso contrário recebem só 35%). Sem imprimir, estocar ou distribuir fisicamente os livros, a plataforma captura uma porção considerável do valor – um pedágio pelo acesso ao mercado global que ela controla.

No caso de vendas de livros impressos, as editoras frequentemente precisam conceder descontos enormes ao varejista online para que seus títulos sejam comprados e promovidos, o que come parte significativa de suas margens. E nos modelos de assinatura como o Kindle Unlimited, os autores são pagos por páginas lidas dentro de um bolso comum – essencialmente competindo uns com os outros por uma fatia do bolo fixo que a Amazon decide mensalmente.

Estratégias questionáveis como o book stuffing (inchar eBooks com conteúdo irrelevante para acumular mais páginas lidas) já foram usadas por alguns espertos para maximizar ganhos dentro do sistema, em detrimento dos demais – algo que a Amazon teve de coibir, assim como um senhor feudal às vezes punia abusos de um vassalo para manter a ordem. Em síntese, o lucro dos autores é subordinado às regras de repartição de renda da plataforma, que podem mudar de uma hora para outra. Não há contratos longos garantindo percentuais imutáveis; as políticas podem ser atualizadas e cabe ao autor aceitar ou perder o acesso ao feudo.

Os autores vivem uma situação particularmente emblemática desse paradoxo. Por um lado, nunca houve tanta liberdade para publicar: qualquer pessoa pode escrever um livro e distribuí-lo globalmente via Kindle, Kobo, Wattpad ou mesmo em redes sociais, sem pedir permissão a editores tradicionais – o que quebra antigos monopólios e dá voz a muita gente de fora do circuito editorial. Por outro lado, essa liberdade tem um preço: a quase total dependência das plataformas privadas para mediar a conexão com o leitor.

Ou seja, por conta da democratização da tecnologia, o autor saiu de uma dependência de mercado; mas, por conta da engrenagem do sistema capitalista, ele caiu em outra dependência. A antiga dependência das editoras tradicionais mantinha a qualidade dos livros; a atual dependência da plataforma da Amazon criou milhares de livros ruins, literalmente lixos literários. Mas essa é uma outra discussão, para um outro texto. Continuando meu raciocínio, é por essa razão que eu não uso o termo ‘autor independente’ em meus escritos. O termo é usado de forma errada e fora de contexto. Um autor independente não é um autor independente na medida em que ele depende do sistema da Amazon para existir. Na medida em que ele usa o selo da Amazon para publicar os seus livros ele, obviamente, deixa de ser um autor independente.

O escritor indie de hoje não precisa de um patrono eclesiástico como no medievo, mas precisa cair nas graças do algoritmo de recomendações da Amazon ou do TikTok (no fenômeno recente do BookTok, em que trends na rede social impulsionam vendas de livros). Ele atua simultaneamente como produtor e servo: é dono do processo criativo (isso se ele não usar a Inteligência Artificial), mas não do canal de distribuição. Seus leitores pertencem à plataforma – se um dia ele sai dela, perde acesso ao seu público, pois não detém os dados de contato daqueles leitores (a plataforma detém).

Mesmo os seguidores nas redes sociais são um ativo volátil: o alcance das postagens do autor é filtrado pelas regras imposta pela rede, e qualquer mudança em seu algoritmo pode despedaçar sua estratégia de marketing de uma hora para outra. Muitos autores, que se autodenominam independentes, hoje se veem forçados a acumular funções – escritor, divulgador, gestor de mídia social – e a navegar um labirinto de políticas de plataformas, tudo para manter um mínimo de autonomia. A posição deles é sintomática: livres das antigas amarras das editoras ditas tradicionais, porém submetidos aos novos senhores da nuvem.

Curiosamente, até editoras tradicionais e autores consagrados também se tornaram, em certa medida, vassalos desse sistema. Editoras dependem imensamente da Amazon para vender (e temem retaliações comerciais caso entrem em conflito aberto com ela, como já aconteceu em disputas de contrato). Autores best-sellers precisam ter presença ativa em redes sociais, interagindo com leitores e produzindo marketing de conteúdo, pois sabem que visibilidade online se traduz em vendas – e essa visibilidade é regida por empresas de tecnologia.

O feudo digital abrange do amador ao profissional: todos jogam no território alheio. A diferença para o feudalismo clássico talvez seja que no digital há uma possibilidade (ao menos teórica) de mobilidade – um autor pode tentar diversificar suas terras, vendendo em múltiplas plataformas menores, criando um site próprio, cultivando uma newsletter para ter contato direto com fãs. Alguns buscam fugir dos feudos criando canais próprios de venda (lojas diretas, financiamento coletivo, Patreon para escritos exclusivos etc.), numa tentativa de recuperar parte do controle. Porém, essas alternativas alcançam nichos; o grosso do público continua nos grandes reinos do Amazon, Google, Facebook. E para aparecer por lá, o caminho inevitável é se submeter às condições impostas.

O mercado editorial atual reflete muitos traços do tecnofeudalismo descrito por Varoufakis. Os autores, especialmente os que buscam ser efetivamente independentes, tornam-se arrendatários precários nos domínios digitais – usufruem da estrutura e do alcance global que as plataformas oferecem, mas ao custo de ceder parte do valor e praticamente todo o controle.

Algoritmos e termos de uso são os novos senhores que moldam o destino de livros e escritores, análogos aos caprichos de nobres medievais que decidiam quais histórias mereciam ser copiadas ou quais bardos podiam se apresentar no castelo. E apesar de todo o verniz moderno, há uma inegável volta de concentração de poder: se antes do impresso o monopólio era da Igreja, hoje vemos o oligopólio de meia dúzia de corporações tech determinando os fluxos do saber e da cultura escrita.

Concluindo o Mercado de Livros em um Contexto de Feudalismo Digital

Em resumo

Ao comparar o feudalismo clássico e o tecnofeudalismo digital através do prisma do mercado de livros, percebemos paralelos inquietantes.

Na era medieval, o conhecimento era acorrentado – física e metaforicamente – nos monastérios, disponível apenas para poucos, até ser libertado pela prensa de Gutenberg. Hoje, vivemos uma situação em que, apesar de toda a democratização prometida pela internet, novas correntes ameaçam restringir a circulação livre das ideias: são as correntes invisíveis dos algoritmos proprietários, dos jardins murados das plataformas e das cláusulas contratuais digitais.

A jornada histórica do livro, da cópia devocional e exclusiva à produção laica em massa, lançou as bases do mundo contemporâneo; e esse legado de Gutenberg ressoa na era digital. Os mesmos temas que marcaram a transição do manuscrito para o impresso – democratização do conhecimento, difusão vertiginosa de informação, e a luta pelo controle e autenticidade da palavra – manifestam-se hoje amplificados pela internet. Em pleno século XXI, a disputa pelo acesso, pela veracidade e pelo controle da informação continua a moldar nosso presente e irá definir nosso futuro.

Reconhecer elementos de feudalismo na economia digital não significa que estejamos literalmente retornando à Idade Média, mas a analogia serve de alerta. Os riscos são claros: concentração extrema de poder nas mãos de plataformas monopolistas, precarização do trabalho criativo, censura privada invisível e perda de autonomia de produtores e leitores.

Vemos uma redução na diversidade de vozes – já que apenas quem se adequa às regras dos algoritmos prospera – e uma erosão da bibliodiversidade (a variedade de livros publicados), sufocada por modelos de negócio que favorecem poucos vencedores. Também há o perigo da dependência cultural: sociedades inteiras condicionadas aos filtros de informação de corporações estrangeiras, como vassalos informacionais.

Há oportunidades e caminhos de resistência se formos corajosos. A própria tecnologia que criou esses feudos pode ser usada para descentralizar novamente a difusão do conhecimento. Iniciativas de código aberto, plataformas cooperativas de publicação e venda direta ao leitor, ou redes sociais baseadas em protocolos descentralizados (como o fediverso) oferecem vislumbres de como criadores podem escapar dos jardins murados e retomar parte da autonomia.

Também discute-se cada vez mais a necessidade de regulação das Big Techs – tratá-las como infraestruturas essenciais, impondo regras de transparência algorítmica, interoperabilidade entre plataformas e proteção aos direitos de criadores e usuários. Políticas assim poderiam equilibrar o jogo, impedindo abusos de poder equivalentes aos direitos de senhor arbitrários.

Esse novo contexto de feudalismo digital, porém, ao contrário do que tenta defender Varoufakis de que não se trataria de capitalismo, se traduz na verdade se traduz em uma nova fase do capitalismo. E todas as tentativas históricas de tentar controlar o capitalismo, por meio da força regulatória dos chamados Estados Nacionais, como é o caso da regulação das Big Techs, não deram lá muito certo. No máximo, experiências como o Welfare State, mas que logo foi substituída pelo neoliberalismo.

Para o mercado de livros, em particular, o futuro pode reservar um reequilíbrio: editoras e autores buscando novas formas de alcançar leitores sem intermediação absoluta das gigantes, leitores tomando consciência e valorizando também canais alternativos (como livrarias independentes online, clubes de livro digitais, bibliotecas digitais públicas).

A história nos lembra que o conhecimento já foi libertado das garras de um monopólio uma vez – quando a palavra impressa rompeu as correntes do scriptorium. Hoje, cabe aos servos da nuvem encontrar maneiras de soltar suas próprias amarras.

Em última instância, o desafio e a esperança residem em garantir que a revolução digital continue sendo, tal como a de Gutenberg, uma força de emancipação da palavra – e não a reinstauração de um feudalismo em novo formato. A construção de um ecossistema do livro mais justo e aberto, em que autores, editores e leitores tenham voz e autonomia, será fundamental para que o conhecimento siga livre, plural e acessível a todos.

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