A combinação de realidade aumentada (RA) com inteligência artificial está redefinindo a forma como lemos livros – sejam eles físicos ou digitais. Novos óculos de RA transformam textos estáticos em experiências audiovisuais imersivas, trazendo elementos das histórias para o mundo ao nosso redor. De dragões que ganham vida enquanto lemos contos de fantasia a ambientes sonoros que nos envolvem na narrativa, a tecnologia está aproximando a leitura do patamar de um filme interativo.
Esses óculos estão demonstrando habilidades surpreendentes, como a de bloquear anúncios da vida real, filtrando visualmente propagandas do nosso campo de visão. A seguir, exploro os principais projetos, empresas e produtos que lideram essa tendência – desde dispositivos já disponíveis no mercado até lançamentos previstos e protótipos promissores – englobando tanto livros físicos quanto eBooks e textos digitais em geral.
Leitura aumentada: textos que ganham vida
A leitura ganha camadas virtuais: A Snap Inc. revelou, durante o evento Augmented World Expo 2025, a nova geração de seus óculos Spectacles – um modelo de realidade aumentada com lentes translúcidas capaz de escanear textos impressos e sobrepor elementos virtuais em tempo real. Batizada de Augmented Reading Lenses, a tecnologia utiliza IA generativa (com modelos como o Google Gemini e da OpenAI) combinada a OCR (reconhecimento ótico de caracteres) para identificar o trecho que o usuário está lendo e então projetar imagens e sons relacionados diretamente no campo de visão. Os Spectacles contam com alto-falantes embutidos, de modo que efeitos sonoros sincronizados podem acompanhar a história.
Imagine, por exemplo, ler um livro infantil e encontrar a frase “o dragão rugiu no céu nublado”: com esses óculos, um dragão virtual aparece flutuando diante do leitor, enquanto um rugido ecoa pelos fones, sincronizado à narrativa. O sistema reconhece palavras-chave, emoções e cenários descritos no texto, gerando modelos 3D animados que se desenrolam conforme o ritmo da leitura. Mesmo quando o leitor desvia os olhos da página, as imagens permanecem suspensas no espaço à sua frente – como se o mundo do livro estivesse materializado no ar. Essa imersão contínua conecta o universo literário ao ambiente real de forma inédita, tornando a leitura mais envolvente e lúdica.
A Snap enfatiza que essa inovação busca enriquecer o livro tradicional. A iniciativa faz parte de um programa da Biblioteca Nacional de Singapura voltado a estimular o interesse pela leitura em jovens e adultos, unindo literatura e mundo digital de forma criativa. O desenvolvimento contou com parceria do LeGarage (laboratório de inovação da agência LePub) e deve entrar em testes beta ainda em 2025. Em breve poderemos ter acesso a esses óculos de RA e suas lentes de leitura aumentada nas bibliotecas e, quem sabe, até em nossas casas.
Vale notar que a Snap adotou uma plataforma aberta no novo Spectacles, com APIs públicas e suporte a modelos de IA integrados. A solução permite que desenvolvedores criem aplicativos que interajam em tempo real com o mundo ao redor – reconhecendo objetos, textos, pessoas e sons – e insiram conteúdo contextual. É justamente essa abertura que possibilitou ir além das experiências de leitura, como veremos a seguir.
Bloquear anúncios: um adblock para o mundo real
A mesma plataforma de óculos AR da Snap demonstrou um uso curioso: filtrar propagandas no mundo físico. Durante a apresentação, foi mostrado um projeto experimental de adblock na vida real, criado pelo desenvolvedor independente Stijn Spanhove. Ele aproveitou os Spectacles e ferramentas de visão computacional para detectar anúncios em tempo real – outdoors, banners, logotipos – e cobri-los com blocos vermelhos no campo de visão do usuário. Na prática, os óculos identificam automaticamente placas publicitárias e as substituem por um espaço vazio ou imagem neutra, evitando que você enxergue aquele reclame de refrigerante ou um letreiro chamativo na rua.
O protótipo funciona como um filtro de realidade aumentada acoplado à nossa visão, lembrando o que extensões de navegador fazem na internet com banners indesejados. Utilizando IA (incluindo o modelo Gemini, do Google) para reconhecimento de imagens, o sistema consegue distinguir conteúdos publicitários e então sobrepor elementos visuais customizáveis no lugar. A ideia fez sucesso nas redes sociais – o próprio autor divulgou um vídeo do conceito no X (Twitter) – e chamou atenção da mídia internacional por demonstrar como óculos AR poderiam atuar como bloqueadores de anúncios no mundo real.
Embora seja um experimento inicial, a visão (sem trocadilhos) de Spanhove abre possibilidades instigantes. No futuro, usuários poderiam personalizar o que enxergam no lugar dos anúncios: desde deixar a área em branco até inserir obras de arte, paisagens virtuais ou lembretes pessoais. Controlar os estímulos visuais do ambiente pode aumentar a concentração e o bem-estar em meio à enxurrada de publicidade urbana – um conceito que gera debate sobre os rumos da propaganda e da percepção visual na era da realidade aumentada. Por ora, a Snap indica que recursos assim ainda não estão disponíveis comercialmente; o app de Spanhove roda apenas nos Spectacles de desenvolvimento, mas ilustra o potencial de um ecossistema de RA + IA que vai muito além do entretenimento.

Sol Reader: mergulho virtual nos eBooks
Enquanto empresas como a Snap misturam elementos digitais ao nosso redor, outras startups seguem um caminho diferente para tornar a leitura mais imersiva. Uma delas é a Sol, criadora do Sol Reader – um par de óculos em formato de headset compacto, focado exclusivamente na leitura de livros digitais. Ao contrário dos óculos de RA transparentes, o Sol Reader funciona como um visor de realidade virtual ultraleve, bloqueando completamente a visão do ambiente para eliminar distrações. Ele foi exibido na CES 2023 como um dispositivo curioso e inovador voltado a eBooks e outros textos digitais.
Leitura digital sem distrações: Com design minimalista, o Sol Reader traz duas telas do tipo e-ink (tinta eletrônica) no lugar das lentes, semelhantes às de e-readers como o Kindle. Por não usar telas emissivas convencionais, a tecnologia e-ink é confortável para os olhos e consome pouca energia, permitindo uma bateria de longa duração (até ~25 horas por carga) – ideal para longas sessões de leitura. O dispositivo pesa cerca de 100 gramas e deve ser utilizado quando o usuário estiver sentado ou em repouso, já que os olhos ficam totalmente cobertos pelas telas. O objetivo é maximizar o foco do leitor, criando um ambiente virtual particular onde só existe você e o texto, sem notificações de celular nem ruídos visuais do mundo externo. Essa barreira visual se mostrou uma ótima solução para quem tem problemas de concentração ao ler, oferecendo mais conforto e imersão na história.
Por dentro, o Sol Reader é simples, mas eficiente: conta com dois microvisores de 1,3 polegadas, cada um com resolução de 256×256 pixels (suficiente para texto nítido) e ajuste de dioptria para dispensar óculos de grau. Ele não possui câmeras ou capacidades AR – afinal, a proposta aqui é ser um tipo de Kindle para o rosto. A interação é feita por meio de um pequeno controle remoto sem fio, usado para virar páginas e selecionar livros ou ajustar configurações. Essa solução mantém os óculos leves no rosto, enquanto suas mãos continuam livres ou ocupadas com outra atividade estática.
Graças à simplicidade do hardware, o custo também se torna relativamente acessível: o Sol Reader foi anunciado por US$ 350 (aproximadamente R$ 1.700), menos de 10% do preço de um headset AR/VR de última geração como o Apple Vision Pro. Em 2023, a empresa recebeu investimentos e iniciou a pré-venda do produto em seu site oficial, distribuindo unidades beta para os primeiros testadores. A expectativa é que, com a melhora na resolução e experiência, o Sol Reader encontre seu público dentre entusiastas de leitura digital que buscam uma experiência mais profunda e sem interrupções.

Telas virtuais gigantes: eBooks através dos óculos AR
Além das iniciativas dedicadas, há uma tendência crescente de usar óculos de realidade aumentada convencionais – já disponíveis no mercado – como plataformas de leitura digital. Modelos de óculos AR para uso pessoal, como o XReal Air (antes Nreal), o Rokid Max, o Lenovo Glasses T1, entre outros, permitem conectar um smartphone ou notebook e projetar uma tela virtual equivalente a um telão diante dos olhos do usuário.
Em vez de visualizar um livro em uma tela pequena de tablet ou e-reader, esses óculos exibem o texto em um display virtual gigante, visível apenas para quem os utiliza, dando a sensação de se estar lendo em uma página widescreen flutuante. Segundo a Rokid, fabricante chinesa do setor, os óculos AR proporcionam uma leitura ergonômica e mãos livres, com ajuste de tamanho do texto conforme preferir. Esses dispositivos integram leitores de eBooks e até estantes virtuais inteiras ao campo de visão, simulando verdadeiras bibliotecas pessoais no ar. Em outras palavras, você pode carregar centenas de livros no bolso e lê-los em qualquer lugar, ampliados em uma parede virtual do tamanho que desejar – seja no conforto da cama, no avião ou mesmo no intervalo do trabalho.
Essa abordagem tem atraído usuários que desejam consumir conteúdo digital de forma mais imersiva e portátil. Diferente do Sol Reader (que isola completamente o usuário), os óculos AR translúcidos como XReal e Rokid permitem manter alguma percepção do ambiente ao redor enquanto exibem o texto, o que pode ser útil em cenários onde você precisa dividir a atenção. Por exemplo, é possível ler um artigo ou relatório projetado à sua frente e, ao mesmo tempo, ver quem se aproxima de sua mesa ou acompanhar o ambiente periférico.
Outra vantagem é que esses óculos não se restringem a livros: eles servem como monitores pessoais para qualquer conteúdo, desde documentos de trabalho até páginas da web, filmes e jogos. A leitura de PDFs, artigos ou HQs em uma tela de 100 polegadas virtual é uma das utilidades destacadas por quem já adotou esses wearables. E como o display só é visível para o usuário, há um ganho de privacidade e foco – você não se distrai com o que acontece no mundo exterior, e ninguém além de você enxerga o conteúdo.
Embora ainda enfrentem limitações (como resolução um pouco menor comparada a telas 4K tradicionais, e a necessidade de conexão a um dispositivo externo), esses óculos de RA de consumo já representam um passo à frente na forma de ler e trabalhar. A popularização de modelos como o XReal Air 2, Meta Quest 3 (com modo pass-through AR) e até os futuros óculos da Meta e da Apple sugere que em breve será comum trocarmos monitores físicos por visores virtuais. No contexto dos livros, isso significa ter livrarias inteiras à disposição em realidade mista, com direito a ajuste de iluminação, fundo virtual temático e quem sabe até avatares ou objetos 3D interativos ilustrando capítulos – algo que algumas experiências experimentais já ensaiam.
O futuro da leitura: entre o físico e o digital
A convergência de tecnologias vestíveis, realidade aumentada e inteligência artificial indica que a leitura está prestes a entrar em uma nova fase. Projetos como os Spectacles da Snap mostram que é possível pegar um livro impresso tradicional e expandir sua história para fora das páginas, adicionando uma camada digital personalizada a cada leitor. Ao mesmo tempo, dispositivos como o Sol Reader e os óculos AR de mercado apontam para uma reinvenção do eBook, tornando-o mais imersivo e flexível – seja isolando o leitor em um ambiente virtual de concentração total, seja permitindo ler em telas flutuantes gigantes com cenários ajustáveis.
Essas novidades dizem não pretender substituir a magia da leitura convencional, mas complementá-la; mas eu afirmo, se der grana, para eles tanto faz. Para as gerações acostumadas a estímulos multimídia constantes, trazer elementos de jogo, som e imagem para a experiência literária pode reacender o interesse pelos livros de forma lúdica. Já para quem sempre amou ler, as novas ferramentas oferecem maneiras de mergulhar ainda mais fundo nas narrativas – seja vivenciando a história ao seu redor ou simplesmente criando um espaço mental livre de distrações para apreciar cada palavra.
Os óculos de realidade aumentada que transformam livros em experiências imersivas estão apenas no começo de sua jornada. Desafios técnicos como melhorar a resolução das projeções, ampliar campos de visão e reduzir custos devem ser superados nos próximos anos. Mas os protótipos e primeiros produtos disponíveis nos dão um vislumbre promissor: em um futuro próximo, poderemos vestir nossos óculos e entrar em qualquer história, alternando perfeitamente entre o mundo real e os universos literários. Como disse uma empresa pioneira, para muitos leitores os livros são o meu metaverso – e agora, com ajuda da tecnologia, esse metaverso pessoal nunca esteve tão próximo de se materializar diante dos nossos olhos.