Introdução: O Gigante Literário e o Paradoxo Económico
Quando o romancista tanzaniano Abdulrazak Gurnah foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 2021, o mundo celebrou, mais uma vez, a imensa riqueza criativa de África. No entanto, por trás do brilho dos prémios internacionais e do talento inegável dos seus autores, a indústria que os nutre enfrenta um profundo paradoxo. Um novo e abrangente relatório da UNESCO, intitulado “The African Book Industry: Trends, Challenges & Opportunities for Growth“, revela uma indústria com um potencial económico colossal, mas que se encontra amarrada por desafios sistémicos que limitam o seu crescimento e a sua capacidade de contar as suas próprias histórias em grande escala.
Este relatório, o primeiro mapeamento do género a cobrir 54 países africanos, serve como a fonte definitiva para esta análise, oferecendo um diagnóstico sem precedentes sobre o estado do setor. A sua tese central é clara: a indústria livreira africana, que atualmente gera cerca de US$ 7 bilhões por ano, possui um potencial latente para se tornar um mercado de US$ 18,5 bilhões. Contudo, para desbloquear este valor, é imperativo confrontar as barreiras estruturais que vão desde a fragilidade das políticas públicas à gritante falta de acesso a livros em vastas áreas do continente.
Este artigo irá mergulhar nos dados e nas conclusões do relatório da UNESCO, traçando um retrato numérico da indústria, analisando as suas barreiras mais críticas, celebrando a sua resiliência e inovação e, por fim, delineando o roteiro proposto para transformar África não apenas num exportador de talento literário, mas também numa potência editorial autossuficiente e próspera.

Um Retrato em Números
Para compreender a dimensão do desafio e da oportunidade, é essencial começar pelos números. O relatório da UNESCO fornece um panorama quantitativo que estabelece a base factual para qualquer discussão sobre o futuro da indústria livreira africana.
A receita anual de aproximadamente US$ 7 bilhões pode parecer substancial, mas representa apenas 5,4% do mercado editorial global de US$ 129 bilhões, um valor desproporcional para um continente que alberga 18% da população mundial. O potencial de crescimento é vasto, com projeções que indicam que o mercado poderia mais do que duplicar, atingindo os US$ 18,5 bilhões.
Um dos indicadores mais alarmantes é o défice comercial. Em 2023, o continente importou um valor estimado de US$ 597 milhões em livros, enquanto as suas exportações totalizaram apenas US$ 81 milhões. Isto resulta num défice comercial impressionante de 76%, significando uma saída líquida de capital de cerca de US$ 516 milhões por ano, que representa empregos e oportunidades económicas perdidas.
A infraestrutura física que sustenta esta indústria é modesta em relação à sua população. O continente conta com aproximadamente 6.400 editoras, 13.000 livrarias, 8.000 bibliotecas públicas e cerca de 270 festivais e feiras de livros anuais.
A Indústria Livreira Africana em Números (2023) | ||
Receita Anual | ~ US$ 7 bilhões | |
Receita Potencial | US$ 18,5 bilhões | |
Importações | US$ 597 milhões | |
Exportações | US$ 81 milhões | |
Défice Comercial | 76% (US$ 516 milhões) | |
Número de Editoras | ~ 6.400 | |
Número de Livrarias | ~ 13.000 | |
Número de Bibliotecas Públicas | ~ 8.000 | |
Fonte: Dados compilados do relatório da UNESCO “The African Book Industry”, 2025. |
O motor económico deste mercado é, de forma esmagadora, a publicação educacional, que representa cerca de 70% da produção total. Este segmento, por si só, tem um potencial de mercado de US$ 13 bilhões, impulsionado por uma população estudantil de 329 milhões de alunos. Esta dependência da edição educacional é, contudo, uma faca de dois gumes. Por um lado, constitui o pilar mais formalizado e lucrativo do setor, sustentando as indústrias em países como a Nigéria, o Quénia e a África do Sul.
Por outro lado, esta concentração de recursos e modelos de negócio no fornecimento de manuais escolares para os governos sufoca o desenvolvimento da edição de interesse geral (ficção, poesia, não-ficção criativa). O investimento de risco em obras que fomentam uma cultura de leitura por prazer torna-se secundário, limitando a diversidade narrativa e tornando a indústria vulnerável a mudanças nas políticas de aquisição governamentais.

As Barreiras Estruturais que Sufocam o Crescimento
O potencial de US$ 18,5 bilhões permanece por realizar devido a um conjunto de barreiras sistémicas que o relatório da UNESCO detalha meticulosamente. Estas barreiras não são incidentais; são estruturais e interligadas, criando um ciclo de estagnação que é difícil de quebrar.
A Fragilidade das Políticas e da Regulação
A base de qualquer indústria próspera é um quadro regulamentar sólido e de apoio, algo que é largamente ausente no setor livreiro africano. Um dado impressionante do relatório é que 90% dos países africanos não possuem leis específicas para a indústria do livro, para além das legislações básicas de depósito legal e direitos de autor. Apenas cinco nações — Argélia, Burkina Faso, Camarões, Costa do Marfim e Mauritânia — implementaram legislação dedicada a apoiar e estruturar o setor.
Um sintoma desta fragilidade regulatória é o problema do ISBN (International Standard Book Number). Apenas 54% dos países africanos possuem uma agência nacional de ISBN. Esta não é uma mera questão técnica, mas sim uma falha que perpetua a dependência e a invisibilidade. Sem uma agência local, as editoras são forçadas a recorrer a entidades estrangeiras, como a AFNIL em França, o que acarreta custos adicionais e burocracia. Mais grave ainda, um livro publicado no Benim com um ISBN francês é contado nas estatísticas globais como uma publicação francesa, mascarando a verdadeira produção literária do país e tornando impossível para o governo beninense monitorizar a sua própria indústria. Esta falta de dados fiáveis impede a formulação de políticas públicas baseadas em evidências, como subsídios à exportação ou proteção de mercado, sendo, portanto, uma questão de soberania económica e cultural.
A nível financeiro, a situação é igualmente precária. O relatório destaca a ausência de mecanismos de financiamento estruturados e o facto de 54% dos países aplicarem uma taxa de IVA padrão sobre os livros, o que os torna mais caros para o consumidor final. Em contraste, modelos inovadores como o Fundo de Taxa sobre Dispositivos Técnicos (LTDF) do Botsuana, que em 2023 recolheu US$ 363.000 para apoiar autores e editoras locais, são exceções notáveis.
A Dependência Externa e a Crise de Produção Local
O défice comercial de 76% é um sintoma de uma dependência crónica de indústrias livreiras estrangeiras. Esta dependência manifesta-se em toda a cadeia de valor. A fraca infraestrutura de impressão local, por exemplo, força muitas editoras a imprimir os seus livros no estrangeiro, em países como a Índia, para obter custos mais competitivos. Isto não só aumenta os custos de produção e os prazos de entrega, como também enfraquece a indústria gráfica local.
A citação de Richard Ali, autor e empresário cultural, capta a essência do problema: “O governo ainda favorece os livros produzidos no estrangeiro por causa da sua qualidade. Isto cria uma perda de rendimento para as editoras que dependem das gráficas locais“. Esta preferência, seja por qualidade percebida ou por custos, perpetua um ciclo em que o investimento local é desencorajado, impedindo que as gráficas nacionais melhorem a sua própria qualidade e competitividade.
A Crise de Acesso: Onde Estão os Livros?
Talvez o desafio mais fundamental seja o acesso físico aos livros. O relatório da UNESCO pinta um quadro desolador: existe, em média, apenas uma livraria para cada 116.000 pessoas no continente. As bibliotecas públicas, cruciais para o acesso democrático à leitura, são ainda mais raras, com uma para cada 189.000 pessoas.
Mesmo nos mercados considerados mais robustos, os números são preocupantes. A Nigéria, o país mais populoso de África, tem apenas uma livraria para aproximadamente 50.000 habitantes. A África do Sul, que lidera em número de bibliotecas, tem uma para cada 40.000 pessoas. Esta escassez de pontos de acesso não é apenas um sintoma da debilidade da indústria; é uma das suas causas principais. Sem livrarias e bibliotecas, especialmente em zonas rurais, uma cultura de leitura por prazer não pode florescer. Sem uma base de leitores sólida, as editoras, particularmente as de interesse geral, não têm um mercado viável para justificar o investimento em novos títulos. Este, por sua vez, é um círculo vicioso: a falta de acesso suprime a procura, que por sua vez suprime a oferta, mantendo a indústria num estado de estagnação.

Sinais de Vitalidade: Inovação e Resiliência num Setor em Transformação
Apesar dos desafios monumentais, a indústria livreira africana está longe de ser estática. O relatório da UNESCO também celebra um ecossistema vibrante, resiliente e cada vez mais inovador, que demonstra um imenso potencial de crescimento a partir de dentro.
Um Ecossistema Criativo Vibrante
O continente pulsa com atividade literária. A proliferação de festivais e feiras de livros, como a Feira Internacional do Livro do Cairo, o Salon International de l’Édition et du Livre de Rabat, e o Aké Arts and Book Festival na Nigéria, são provas de um setor dinâmico. Estes eventos, juntamente com prémios de prestígio como o Prix Ahmed Baba no Mali e o recém-criado CANEX Prize for Publishing, não só celebram a excelência literária, como também criam mercados e redes de contacto essenciais para os profissionais do setor.
O poder das histórias africanas transcende a página impressa, com um número crescente de adaptações para cinema e televisão que alcançam audiências globais. Obras canónicas como Things Fall Apart de Chinua Achebe, e sucessos contemporâneos como a novela gráfica Aya de Yopougon de Marguerite Abouet, demonstram a relevância e o apelo universal das narrativas do continente. A sustentar este ecossistema estão cerca de 200 associações profissionais a nível nacional e órgãos pan-africanos como a African Publishers Network (APNET), que desempenham um papel crucial na defesa de direitos, na reforma de políticas e na profissionalização do setor.
A Vanguarda Digital e a Ascensão das Mulheres
A inovação digital está a emergir como um poderoso catalisador de mudança. Pioneiros como a Nouvelles Éditions Numériques Africaines (NENA) no Senegal, com o seu foco em eBooks e audiobooks, e a Akoobooks no Gana, estão a remodelar o panorama editorial, contornando as barreiras de distribuição física que há muito assolam o continente. A Inteligência Artificial (IA) também apresenta oportunidades promissoras, especialmente na tradução, com projetos como a Abantu AI no Quénia, que desenvolve modelos para línguas locais, e o ArzEn-LLM no Egito, focado no árabe-inglês, a mostrarem o potencial para aumentar a circulação transfronteiriça de livros.
Paralelamente a esta transformação digital, o relatório destaca um “compromisso encorajador com a igualdade de género“. Em países como a África do Sul e o Botsuana, as mulheres já representam 73% e 70% da força de trabalho no setor, respetivamente. A ascensão de escritoras de renome mundial como Chimamanda Ngozi Adichie e Djaïli Amadou Amal é um reflexo de uma tendência mais ampla de maior visibilidade e representação feminina.
Estas duas tendências — a digitalização e a inclusão — não são fenómenos isolados, mas sim forças convergentes e mutuamente reforçadoras. As plataformas digitais oferecem a escritoras e a autores em línguas minoritárias um caminho para o mercado que contorna os guardiões da publicação tradicional. Ao mesmo tempo, a crescente procura por narrativas diversas e autênticas cria um mercado fértil para este novo conteúdo digital. Uma política de crescimento inteligente deve, portanto, focar-se nesta intersecção, apoiando plataformas digitais que priorizem vozes femininas e em línguas locais, e utilizando a IA para traduzir estas obras para mercados mais vastos. Esta sinergia pode ser o acelerador mais potente para o futuro do setor.

O Roteiro para o Futuro
Face a este diagnóstico complexo, o relatório da UNESCO não se limita a identificar problemas; oferece um roteiro claro e acionável para o futuro. A sua mensagem central é que a transformação da indústria livreira africana exige uma ação coordenada entre governos, editoras, autores e a sociedade civil. As recomendações estão estruturadas em três pilares fundamentais.
Pilar 1 | Fortalecer os Quadros Legais e Institucionais
A base de tudo é a criação de um ambiente institucional robusto. A UNESCO apela ao desenvolvimento de Políticas Nacionais do Livro (PNL) abrangentes, que integrem objetivos culturais, educacionais e industriais. Para implementar estas políticas, sugere a criação ou o fortalecimento de Conselhos Nacionais de Desenvolvimento do Livro (CNDL), órgãos que centralizariam a coordenação entre todas as partes interessadas, desde ministérios a associações de escritores, garantindo uma abordagem unificada e estratégica.
Pilar 2 | Construir um Mercado Doméstico Forte para as Editoras Locais
Para reduzir a dependência externa, é crucial fortalecer o mercado interno. O relatório propõe um conjunto de medidas concretas, incluindo a implementação de políticas de investimento estrangeiro que protejam as editoras locais da absorção por grandes conglomerados. Sugere também a inclusão do setor livreiro nos Planos de Ação de Política Industrial (IPAP) nacionais, reconhecendo-o como um setor prioritário para o desenvolvimento económico. A criação de agências de ISBN nacionais e o estabelecimento de programas de subsídios à exportação são vistos como passos essenciais para aumentar a competitividade e a presença regional das editoras africanas.
Pilar 3 | Aumentar o Acesso aos Livros e Promover a Leitura
Finalmente, para que a indústria prospere, é preciso que haja leitores. A UNESCO enfatiza a necessidade de investir massivamente em redes de distribuição, apoiando a criação de mais livrarias e desenvolvendo quadros legais para as bibliotecas públicas que garantam o seu financiamento e expansão, especialmente em zonas rurais. O lançamento de campanhas nacionais de leitura, informadas por inquéritos periódicos sobre os hábitos de leitura da população, é considerado fundamental para cultivar uma cultura de leitura por prazer e, consequentemente, expandir o mercado para todos os tipos de livros.
Em suma, embora os desafios sejam formidáveis, o roteiro proposto pela UNESCO demonstra que um futuro próspero para a indústria livreira africana é possível. A concretização deste futuro depende da vontade política e da colaboração estratégica para transformar o imenso potencial criativo do continente num motor sustentável de desenvolvimento económico, literacia e empoderamento cultural.
Saiba Mais
Baseei este meu texto integralmente no relatório da UNESCO, uma iniciativa anunciada para impulsionar as indústrias criativas em África. Para mais detalhes sobre o anúncio, visite:
https://www.unesco.org/en/articles/unesco-launches-new-initiatives-creativity
Para uma análise aprofundada, com dados detalhados por país e as recomendações completas, a UNESCO disponibiliza o relatório completo “The African Book Industry: Trends, Challenges & Opportunities for Growth” para download gratuito. Aceda ao relatório em: