No prefácio de Palestina: Uma Biografia, Rashid Khalidi relata a célebre carta de 1899 em que seu tio-bisavô, prefeito de Jerusalém, implorava ao líder sionista Theodor Herzl que “deixasse a Palestina em paz”. A partir dessa cena histórica e familiar, Khalidi nos conduz por uma crônica rigorosa e pessoal de cem anos de destino palestiniano – uma jornada que ele narra com o pulso do historiador e a alma do testemunho. O resultado é um livro ao mesmo tempo acadêmico e emocionante, que vira de cabeça para baixo visões arraigadas sobre o conflito no Oriente Médio e oferece uma lente palestina para entendermos uma guerra centenária.
Escrito em prosa acessível e cativante, Palestina: Uma Biografia – Cem Anos de Guerra e Resistência consegue a proeza de ser didático sem soar didático demais. Khalidi estrutura o relato como quem conta a vida de uma pessoa: no caso, essa “pessoa” é a própria Palestina – um ente coletivo, sem Estado próprio, disperso pela diáspora, mas dotado de uma identidade cultural resistente.
Cada capítulo equivale a um momento crucial dessa vida: do nascimento traumático do conflito, com promessas imperiais feitas sobre cabeças alheias em 1917, passando pela perda violenta da terra natal em 1948, pelas revoltas de indignação na juventude (as intifadas), até chegar à difícil maturidade de um povo que ainda luta por seu direito de existir. Khalidi não se restringe a enumerar batalhas e acordos – ele ilumina os bastidores e contextos de cada época. Entendemos como a Declaração Balfour saiu de um gabinete em Londres, mas ecoou tragicamente em aldeias palestinas; vemos as grandes potências jogando xadrez com territórios no pós-guerra; observamos líderes árabes e israelenses calculando riscos e ganhos, enquanto famílias comuns pagam o preço nas ruas de Jafa, Gaza ou Jenin.
O grande trunfo desta obra é justamente conciliar o macro e o micro: alternar entre a visão panorâmica dos fatos históricos e os detalhes íntimos que lhes dão vida. Assim, episódios que às vezes aparecem como abstrações nos livros didáticos – como a criação do Estado de Israel ou a Guerra dos Seis Dias – aqui ganham contornos vívidos e humanos. Isso ocorre porque Khalidi entrelaça dados de arquivo e análise política com histórias de pessoas reais, muitas delas de sua própria família.
Ao ler, por exemplo, sobre a Nakba de 1948, não vemos apenas mapas e números de refugiados; vemos também, pelos olhos de parentes do autor, as casas abandonadas às pressas, os comboios de famílias chorosas caminhando para o exílio, o silêncio das oliveiras em terras que mudaram de dono à força. Essa dimensão pessoal não é sentimentalismo gratuito – é um recurso narrativo poderoso que aproxima o leitor da matéria tratada, lembrando que por trás de resoluções da ONU e tratados está o destino de milhões de indivíduos.
Importante frisar que Khalidi consegue entregar essa carga emocional sem abdicar da objetividade crítica. Embora tenha um ponto de vista declarado – o do povo palestino –, ele não se furta a examinar erros e contradições do próprio lado palestino. Em vários trechos, o autor reflete sobre decisões malsucedidas de líderes árabes, oportunidades perdidas em negociações e divisões intestinas que enfraqueceram a causa.
Essa honestidade intelectual fortalece o livro: longe de ser propaganda unilateral, Palestina: Uma Biografia se apresenta como uma análise madura de um conflito complexo. A diferença é que Khalidi efetua a análise sob uma perspectiva historicamente negligenciada nos círculos ocidentais. Se durante décadas muitas obras em inglês descreveram a saga de Israel como um milagre corajoso e a dos palestinos como pano de fundo quase invisível, aqui o holofote muda de ângulo. O foco incide sobre a experiência palestina – suas perdas irreparáveis, sua resistência obstinada e também suas escolhas difíceis. Essa mudança de narrativa é não apenas bem-vinda, mas necessária: como nota Lisa Anderson, ex-reitora da Universidade Columbia, é “a mais coerente e abrangente” exposição dessa história pela ótica palestina já publicada.

Outro mérito notável do livro está em contextualizar a questão palestina dentro do xadrez global, sem deixar que o leitor se perca nos meandros diplomáticos. Khalidi nos faz compreender que a Palestina não é uma ilha: desde o início, ela esteve enredada em interesses internacionais – primeiro das potências coloniais europeias, depois das superpotências da Guerra Fria e, continuamente, de potências regionais. O autor explora essas engrenagens maiores com clareza jornalística.
Por exemplo, ao explicar a Guerra de 1967, ele mostra como a estratégia americana no Oriente Médio, abalada pelo Vietnã, levou Washington a abraçar de vez Israel como aliado, mudando para sempre o equilíbrio local. Ao narrar Oslo, ele revela bastidores em que mediadores supostamente neutros inclinavam a balança para um lado. Esse pano de fundo geopolítico é crucial para desmontar mitos simplistas e Khalidi o desenrola com maestria, sem nunca perder o fio da narrativa.
Para leitores brasileiros e portugueses, Palestina: Uma Biografia chega em boa hora e em tradução competente, preenchendo uma lacuna de obras de fôlego sobre o tema disponíveis em língua portuguesa. Em um momento histórico em que o conflito israelo-palestino volta e meia irrompe nas manchetes – e infelizmente o faz com picos de violência devastadora –, o livro de Khalidi oferece perspectiva histórica e equilíbrio. Ajuda a entender, por exemplo, porque a questão de Jerusalém é tão sensível, remontando a eventos de um século atrás; ou por que os campos de refugiados em Gaza e no Líbano existem até hoje, à luz das guerras de 1948 e 1967.
Trata-se, portanto, de leitura fundamental para quem deseja ir além do noticiário superficial e realmente compreender as raízes da tragédia que se desenrola naquela terra. Como apontou uma leitora, é uma obra indispensável para captar “a urgência de uma solução política para alcançar a paz”, pois expõe as causas históricas do impasse atual e humaniza todos os envolvidos.
Em estilo jornalístico refinado, Khalidi nos entrega um texto que informa e engaja na mesma medida. As 400 páginas fluem sem esforço, tamanha a habilidade narrativa do autor em combinar episódios familiares com análise global. A cada capítulo, sentimos indignação pelos infortúnios descritos, mas também admiração pela resiliência de um povo que “não abdica de existir” apesar de tudo. Esse equilíbrio entre denúncia e homenagem faz de Palestina: Uma Biografia mais do que um livro de história – é também um tributo à perseverança palestina e um chamado à empatia.
Em conclusão, a obra de Rashid Khalidi destaca-se como referência incontornável sobre o tema. É ao mesmo tempo um sumário abrangente de cem anos de conflitos e uma narrativa íntima que dá voz aos silenciados. Para o público lusófono, a leitura desta biografia de um país sem Estado é altamente recomendada – seja para desconstruir visões simplistas, seja para adquirir conhecimento sólido embasado em pesquisa, seja, acima de tudo, para enxergar a causa palestina sob a luz da humanidade compartilhada.
Palestina: Uma Biografia – Cem Anos de Guerra e Resistência possui os méritos das grandes obras: esclarece, emociona e faz pensar. É um livro que, sem dúvida, merece um lugar de destaque na estante de quem se interessa por história contemporânea, questões do Oriente Médio ou simplesmente por entender as dores e esperanças de um povo em busca de justiça. Recomendado.
