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Os Jogos Musicais de Dados

Em salões aristocráticos do final do século XVIII, era possível compor música jogando dados. Os chamados Jogos Musicais de Dados (em alemão, Musikalisches Würfelspiel) surgiram como um entretenimento lúdico e curioso, permitindo a qualquer pessoa gerar minuetes ou valsas originais sem saber nada de teoria musical.

Nesse sistema, os dados determinavam quais trechos musicais pré-escritos seriam tocados em sequência, combinando acaso e engenharia musical de forma engenhosa. Popularizados por compositores da época, esses jogos se tornaram um tipo de brincadeira erudita, precursora da música generativa e algorítmica que hoje vemos expandir-se com a tecnologia.

Em um jogo de dados musicais, você lança os dados e usa o número gerado para escolher compassos: compasso 1 da coluna 1, compasso 2 da coluna 2, etc.
Em um jogo de dados musicais, você lança os dados e usa o número gerado para escolher compassos: compasso 1 da coluna 1, compasso 2 da coluna 2, etc.

A Origem de um Entretenimento Algorítmico

Tabela original do jogo musical de dados de Johann Philipp Kirnberger (1757), um dos primeiros do gênero. Cada coluna corresponde a um compasso musical, e os números sorteados nos dados indicavam qual trecho escolher de cada coluna, compondo assim um minueto ou polonaise ao acaso.

A ideia de usar o acaso para gerar música floresceu no século XVIII. O primeiro exemplo documentado veio em 1757, com o tratado Der allezeit fertige Menuetten- und Polonaisencomponist de Johann Philipp Kirnberger, que oferecia tabelas para compor minuetos e polonaises “prontos em instantes”.

Logo outros se empolgaram: em 1758, C. P. E. Bach propôs um método para criar contraponto duplo de seis compassos sem conhecer as regras (bastando seguir combinações numéricas), e em 1780 Maximilian Stadler publicou instruções para compor minuetes e trios ad infinitum usando dois dados.

Esses jogos, vendidos como diversões musicais, permitiam que mesmo um diletante jogasse os dados e escolhesse sequências de compassos pré-escritos, montando assim uma pequena peça musical. A cada lançamento dos dados, novos trechos eram selecionados de uma tabela – e a magia acontecia: surgia uma nova melodia coerente, fruto da sorte guiada pelas regras do jogo.

Mozart Melody Dicer Composing Game
Mozart Melody Dicer Composing Game

Mozart e a Valsa Infinita

O mais famoso desses jogos foi atribuído a ninguém menos que Wolfgang Amadeus Mozart. Em 1792, pouco após a morte do compositor, seu editor Nikolaus Simrock em Berlim publicou um Musikalisches Würfelspiel creditado a Mozart na capa (obra K.516f). Nele, 176 compassos musicais estavam numerados em uma grande tabela; dois dados determinavam quais desses compassos seriam encadeados para formar uma valsa.

Mesmo sem qualquer conhecimento musical, uma pessoa podia compor quantas valsas quisesse apenas lançando os dados, seguindo as instruções intituladas “Anleitung zum Componieren von Walzern, so viele man will, vermittelst zweier Würfel, ohne etwas von der Musik oder Composition zu verstehen” – em tradução livre, “Instruções para compor quantas valsas quiser por meio de dois dados, sem entender nada de música ou composição”.

Trecho das instruções do jogo musical de dados atribuído a Mozart, publicado em 1792. A tabela intitulada “Tabela de números para Valsa” (em francês e alemão) mostra quais compassos usar conforme os resultados dos dois dados lançados.

O funcionamento era simples e brilhante: cada medida (compasso) da valsa tinha várias opções de melodias pré-compostas; um lançamento de dados escolhia qual opção usar em cada medida, e assim sucessivamente até completar a peça. O resultado soava surpreendentemente coerente – não era uma cacofonia aleatória, pois todos os fragmentos haviam sido compostos na mesma tonalidade e estilo.

Na verdade, a trapaça por trás do jogo era que qualquer combinação dos trechos soaria musical, graças ao critério e conhecimento teórico empregados na preparação da tabela. A valsa final sempre respeitava as regras de harmonia e forma típicas da época, apenas ordenando frases distintas de maneira nova a cada partida.

O manuscrito de Mozart, escrito em 1787 e composto por 176 fragmentos musicais de um compasso, parece ser algum tipo de jogo ou sistema para construir música a partir de fragmentos de dois compassos, mas não contém instruções e não há evidências de que dados estivessem envolvidos.
O manuscrito de Mozart, escrito em 1787 e composto por 176 fragmentos musicais de um compasso, parece ser algum tipo de jogo ou sistema para construir música a partir de fragmentos de dois compassos, mas não contém instruções e não há evidências de que dados estivessem envolvidos.

Combinações Astronômicas e Autoria Incerta

Cada valsa gerada por este jogo de Mozart poderia ser única – as possibilidades combinatórias ultrapassavam a imaginação. Com 16 compassos selecionados por dados (cada um com 11 opções possíveis em média), o esquema permitia cerca de 2 × 11^14 ≈ 7,59 × 10^14 combinações diferentes, ou seja, aproximadamente 759 trilhões de valsas distintas poderiam ser formadas. É um número tão absurdo que, mesmo jogando dados todos os dias, seria praticamente impossível repetir a mesma música duas vezes. Para efeito de comparação, um baralho comum de 52 cartas pode ser arranjado de ~8 × 10^67 formas diferentes – um número com 68 dígitos! Assim como nenhum jogo de cartas jamais sai igual ao outro, cada execução do jogo de dados de Mozart prometia uma novidade musical praticamente inesgotável.

Curiosamente, não há evidências diretas de que o próprio Mozart tenha inventado esse jogo. A atribuição a Mozart foi questionada por musicólogos, já que o manuscrito original não traz instruções de uso nem menção a dados. É possível que Simrock tenha usado o nome do gênio para promover o jogo – prática comum na época.

Da mesma forma, um jogo semelhante publicado na mesma era, intitulado Gioco filarmonico (1780), foi atribuído popularmente a Joseph Haydn, embora não haja comprovação de que ele o tenha escrito. De todo modo, essas obras carregam os estilos típicos de seus supostos autores, o que certamente adicionou charme e aura de legitimidade a esses passatempos musicais.

Os Jogos Musicais de Dados e Cartas
Os Jogos Musicais de Dados e Cartas

Outros Mestres entram no Jogo

Mozart e Haydn não foram os únicos a brincar com música e dados. A febre dos jogos musicais contagiou vários compositores e teóricos do Iluminismo musical. Além dos já citados Kirnberger, C.P.E. Bach e Stadler, há registros de outros métodos semelhantes circulando pelas capitais europeias. Até o célebre Joseph Haydn teria se envolvido: acredita-se que ele seja associado a um jogo chamado “Gioco filarmonico ossia maniera facile per comporre un’infinità de minuetti e trio…”, cuja promessa era “compor um número infinito de minuetos e trios, sem conhecer contraponto”. Embora a autoria real seja duvidosa, o fato de tais jogos serem atribuídos a luminares da música clássica mostra o quão difundido estava esse conceito na época.

Vale notar que esses jogos não eram encarados como técnicas sérias de composição acadêmica, mas sim como curiosidades lúdicas. Eram passatempos de salão, muitas vezes vistos como brincadeiras matemáticas musicais para divertimento de amadores e eruditos. Ainda assim, refletem uma mentalidade combinatória do período: em plena Era do Iluminismo, aplicava-se a lógica e a ordem mesmo ao acaso, catalogando-se fragmentos musicais de forma que a sorte pudesse guiá-los dentro de limites harmônicos aceitáveis.

Como observou o musicólogo Stephen Hedges, “a classe média galante na Europa brincava com matemática; num clima de investigação e catalogação, um dispositivo que aparentemente permitisse a qualquer um escrever música tinha popularidade garantida”. Em outras palavras, os jogos de dados musicais eram o encontro do racionalismo iluminista com a diversão musical.

Os Jogos Musicais de Dados
Os Jogos Musicais de Dados

Os Algoritmos Musicais Antes da IA

Embora fossem entretenimento, os jogos musicais de dados traziam embutida uma ideia profunda: música podia ser gerada por um procedimento sistemático, antecipando conceitos de composição algorítmica. Cada jogo desses era, na essência, um algoritmo manual – um conjunto de regras e passos que, dados certos inputs (os números dos dados), produzia um output musical estruturado. Foi uma das primeiras demonstrações populares de música generativa, muito antes de termos computadores ou inteligência artificial compondo canções.

Especialistas destacam que não era o elemento aleatório por si só que tornava a música interessante, mas a inteligência estrutural por trás do sistema. Todos os possíveis resultados eram pré-planejados para soar bem; o acaso escolhia o caminho, mas o terreno havia sido cuidadosamente preparado pelo compositor. Essa abordagem modular e combinatória antecipou exatamente como funcionam os sistemas modernos de música com IA, que aprendem padrões e os recombinam de formas novas porém estilisticamente consistentes.

Os jogos musicais de dados do século XVIII foram os precursores diretos da composição algorítmica: mostravam que, ao decompor música em módulos e criar regras de combinação, era possível automatizar partes do processo criativo.

No século XIX, a prática desses jogos caiu em desuso à medida que a música romântica valorizou inspiração pessoal e desenvolvimento temático único. Mas a semente algorítmica já estava plantada. No século XX, quando os primeiros computadores surgiram, compositores e cientistas logo retomaram a ideia. Em 1957, por exemplo, a Suite Illiac – primeira música inteiramente composta por um computador – foi gerada usando princípios probabilísticos e combinatórios muito semelhantes aos dos jogos de dados de 200 anos antes.

Lejaren Hiller e Leonard Isaacson, criadores da peça, programaram o computador ILLIAC I com regras de contraponto e deixaram-no combinar motivos aleatoriamente dentro dessas normas. O resultado, embora inédito e tecnológico, não deixou de ser uma extensão das experiências de Mozart e Haydn, agora em linguagem de máquina. Tanto que estudiosos notam o paralelo: “a abordagem de Hiller refletia de modo impressionante os jogos de dados do século XVIII – ambos os sistemas usavam composição modular, seleção probabilística e conhecimento musical embutido para gerar resultados novos porém coerentes”.

Jogos Musicais de Dados
Jogos Musicais de Dados

Do Salão Aristocrático à Cultura Geek

Hoje, vivemos uma nova era de música generativa automatizada, impulsionada por inteligência artificial. Projetos como o OpenAI MuseNet ou o Google Magenta são capazes de aprender padrões de milhares de músicas e produzir composições originais em segundos. Mas em essência, esses sistemas modernos operam sob princípios familiares: eles recombinam fragmentos de informação musical (notas, acordes, ritmos) de acordo com regras estatísticas e estéticas – tal como os jogos de dados recombinavam compassos pré-definidos conforme regras harmônicas.

A diferença está na escala e na tecnologia, não na filosofia. Onde o jogo de Mozart usava 176 fragmentos escritos manualmente, uma IA pode treinar em milhões de melodias existentes; onde os dados forneciam números aleatórios, hoje usamos geradores pseudoaleatórios e redes neurais para explorar possibilidades. Mas o conceito de “música como combinação de peças pré-moldadas” é o mesmo. Assim, os jogos musicais de dados do passado são frequentemente lembrados como antepassados dos algoritmos musicais – uma prova de que a criatividade pode, sim, ser parcialmente sistematizada.

Não por acaso, o fascínio pelas possibilidades combinatórias transbordou do domínio musical para a cultura geek e os jogos modernos. O prazer de gerar algo novo a cada tentativa está presente em muitos hobbies contemporâneos. Jogadores de cardgames, por exemplo, apreciam o fato de que cada distribuição de cartas é única: um baralho de 52 cartas tem cerca de 8×10^67 ordens possíveis, número tão astronômico que provavelmente nenhuma partida de cartas na história repetiu exatamente a mesma sequência.

Da mesma forma, jogos de RPG de mesa ou videogames roguelike celebram a aleatoriedade controlada para criar aventuras sempre diferentes. Esse amor pelas “infinitas combinações” tem raízes no mesmo encanto que os Jogos Musicais de Dados provocavam dois séculos atrás – a sensação de que, com algumas regras e um pouco de sorte, existe um universo de resultados surpreendentes a explorar.

Em retrospecto, aqueles livretos musicais com tabelas e dados do século XVIII podem ser vistos como mais do que uma curiosidade histórica. Eles são pioneiros lúdicos de uma ideia poderosa: a de que arte e cálculo podem andar de mãos dadas. Ao lançar os dados, nobres e músicos de antigamente se maravilhavam com a capacidade de criar melodias inéditas quase como um truque de mágica – mal sabiam eles que estavam antecipando princípios que voltariam com tudo na era digital.

Hoje, quando um compositor usa um algoritmo ou uma IA para auxiliá-lo, ele está, em certo sentido, jogando uma versão moderna daquele jogo de dados musical. A diferença é que, em vez de pergaminhos e dados de osso, temos computadores e códigos; mas a busca pelo novo dentro do possível continua a mesma, conectando a sala de estar de Mozart aos estúdios high-tech e às mesas de jogo dos geeks do século XXI.

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