Por mais de dois mil anos, um tesouro literário permaneceu oculto nas cavernas áridas próximas ao Mar Morto. Quando finalmente veio à luz em 1947, revelou-se como uma das mais importantes descobertas arqueológicas do século XX: os Manuscritos do Mar Morto.
Estes documentos antigos não apenas transformaram nossa compreensão sobre o judaísmo do período do Segundo Templo, mas também lançaram nova luz sobre as origens do cristianismo e a evolução dos textos bíblicos.
Esta é a história extraordinária de uma comunidade religiosa que, diante da ameaça de destruição, tomou a decisão de preservar seu legado literário para a posteridade, escondendo-o nas cavernas do deserto da Judeia. É também a saga da redescoberta desses textos e do meticuloso trabalho de organização e decodificação que continua até hoje.

Os Essênios | Uma Seita em Busca da Pureza
No turbulento cenário religioso da Palestina do século II a.C., diversas correntes do judaísmo competiam por influência e legitimidade. Enquanto os fariseus e saduceus ocupavam posições de destaque na sociedade judaica, um terceiro grupo optou por um caminho diferente. Os essênios, como foram chamados por historiadores antigos como Flávio Josefo, Plínio, o Velho, e Fílon de Alexandria, buscavam uma vida de pureza e devoção longe dos centros urbanos que consideravam corrompidos.
“O grupo nasce como uma resposta a um contexto particular do seu tempo, desenvolvendo-se por meio de influências políticas, religiosas e socioeconômicas”, explica um estudo da Revista de Filosofia e Teologia. Sua origem está provavelmente associada ao movimento dos hassidim (“os piedosos”), judeus conservadores que se engajaram na luta junto aos Macabeus contra o rei selêucida Antíoco Epífanes, que tentava impor a helenização de Jerusalém e da Judeia.
No entanto, o exercício da liderança macabeia e seu desenrolar político e religioso trouxe uma sucessão de líderes que foram contestados pelos hassidim. Esta postura levou à gênese dos essênios, que se retiraram para o deserto como forma de resistência, afastando-se da cidade e do Templo, que consideravam maculados pela ilegitimidade de seus líderes.

Os essênios viviam em comunidades organizadas, compartilhando bens e seguindo um rigoroso código de conduta. Praticavam rituais de purificação diários, estudavam intensamente as escrituras sagradas e acreditavam estar vivendo nos “últimos dias” antes da intervenção divina que restauraria a ordem correta do mundo. Embora existissem comunidades essênias em várias partes da Palestina, o assentamento de Qumran, às margens do Mar Morto, tornou-se um de seus principais centros.

Os Guardiões da Palavra | Copistas, Escribas e “Bibliotecários” Essênios
Para os essênios, a preservação e transmissão dos textos sagrados era uma missão de suprema importância. Em Qumran, desenvolveu-se um sofisticado sistema de produção e conservação de manuscritos, com escribas e copistas altamente treinados dedicando suas vidas a esta tarefa sagrada.
Os escribas essênios não eram meros copistas mecânicos. Eles dominavam não apenas a arte da caligrafia, mas também possuíam profundo conhecimento das escrituras e tradições judaicas. Trabalhavam com extremo cuidado e precisão, seguindo regras estritas para garantir a fidelidade dos textos. Quando cometiam erros, outros escribas revisores os corrigiam, como evidenciado pelas anotações encontradas nas margens de vários manuscritos.
A produção de um manuscrito era um processo laborioso que exigia materiais específicos e técnicas refinadas. Os pergaminhos eram feitos principalmente de pele de ovelha, cuidadosamente preparada para receber a tinta. Análises recentes de DNA realizadas em fragmentos dos manuscritos confirmaram que “quase todos os fragmentos são de pergaminhos feitos de pele de ovelha”, conforme publicado na revista científica Cell.
Além dos copistas, havia também os que poderíamos chamar de “bibliotecários”, responsáveis pela organização, catalogação e preservação dos manuscritos. Estes guardiões do conhecimento desenvolveram métodos para proteger os textos das duras condições do deserto, como o uso de jarros de cerâmica selados e o armazenamento em cavernas naturais, onde a temperatura e umidade eram relativamente estáveis.

A Comunidade de Qumran | Um Refúgio no Deserto
O assentamento de Qumran, situado em um platô árido com vista para a costa noroeste do Mar Morto, tornou-se o lar de uma comunidade essênia particularmente dedicada e rigorosa. Estes essênios não se autodenominavam como tal, mas usavam termos como yahad (“comunidade”), ‘adah (“congregação”), ‘asah (“conselho”), entre outros, para se referirem ao seu grupo.
Segundo os arqueólogos, viviam em Qumran entre 150 e 200 pessoas. Em dois séculos de existência da comunidade, estima-se que cerca de 1.200 pessoas tenham habitado o local. As evidências arqueológicas e os próprios manuscritos revelam uma comunidade altamente organizada, com uma hierarquia bem definida e regras estritas.
Na organização interna da comunidade de Qumran, observa-se a predominância dos sacerdotes (filhos de Aarão) sobre os leigos. O órgão supremo de governo era a “assembleia dos numerosos” (môshab harabbim), que se reunia para discutir a Lei, os negócios da comunidade, acolher ou rejeitar novos membros e julgar transgressões. Havia também o “Conselho da Comunidade”, composto por doze leigos e três sacerdotes, possivelmente representando as doze tribos de Israel e as três famílias sacerdotais.

O responsável por toda a comunidade era o mebaqqer (“inspetor”), às vezes chamado de paquid (“presidente”), que administrava os bens da comunidade e guiava seus membros. Havia também o maskîl (“instrutor”), dedicado à formação espiritual.
O sistema de admissão na comunidade era rigoroso, exigindo um período probatório de três anos. No primeiro ano, o candidato era instruído nas regras da comunidade, mas vivia fora dela. No segundo ano, ingressava na comunidade, mas não participava das refeições comuns nem da comunhão de bens. No terceiro ano, entregava seus bens ao tesoureiro da congregação e continuava sua formação. Somente após esses três anos, se aceito pela assembleia, o candidato passava a participar integralmente da vida comunitária.
O ideal da comunidade era “buscar a Deus com todo o coração e com toda a alma; fazer o que é bom e o que é reto em sua presença”, conforme descrito na Regra da Comunidade. Eles cultivavam a terra, faziam cerâmica, curtiam peles e, crucialmente para nossa história, copiavam manuscritos.

O Esconderijo nas Cavernas | Uma Decisão Desesperada
No tempo de Arquelau (4 a.C. – 6 d.C.), a área de Qumran foi reocupada após um período de abandono causado por um terremoto. Extensos reparos foram realizados e o centro da comunidade foi ampliado. No entanto, este renascimento seria breve.
Por volta de 68 d.C., o estabelecimento chegou ao fim. Os exércitos romanos, empenhados em sufocar a Grande Revolta Judaica (66-73 d.C.), avançavam pela região, deixando destruição por onde passavam. Jerusalém seria conquistada e o Templo destruído em 70 d.C.
Diante da iminente chegada das legiões romanas, a comunidade de Qumran tomou uma decisão desesperada: esconder seus preciosos manuscritos nas cavernas próximas. “Os exércitos romanos estavam empenhados em humilhar os judeus que os desafiavam. A comunidade de Qumran escondeu seus preciosos manuscritos nas cavernas próximas, talvez imaginando que retornariam e os resgatariam, quando as poeiras da guerra baixassem e, então, pudessem continuar suas vidas monásticas”, explica o pesquisador Mario Sergio Porto.

Com cuidado meticuloso, os essênios embrulharam os manuscritos em linho, colocaram-nos em jarros de cerâmica e os selaram antes de escondê-los nas cavernas calcárias que pontilhavam a região. Era uma tentativa desesperada de preservar seu legado literário e espiritual da destruição iminente.
A comunidade de Qumran foi, de fato, destruída pelos romanos, e seus membros provavelmente mortos ou dispersos. Os manuscritos permaneceriam ocultos por quase dois milênios, aguardando sua redescoberta.

A Descoberta Acidental | Os Meninos Beduínos e o Tesouro Perdido
Em algum momento na primavera de 1947, um jovem pastor beduíno chamado Muhammad ed-Dhib (Muhammad, o Lobo) pastoreava suas cabras nas encostas rochosas próximas ao Mar Morto. Enquanto procurava uma cabra perdida entre os penhascos de calcário que rodeavam a região, o menino encontrou uma abertura em uma das rochas – uma caverna que nunca tinha visto antes.
Cauteloso, antes de entrar, Muhammad jogou uma pedra no interior da caverna e, para sua surpresa, ouviu um som estranho, como de objetos quebrando. Intrigado, mas também assustado, o jovem pastor inicialmente fugiu. Mais tarde, retornou com outro menino para explorar a caverna.
No interior, encontraram diversos jarros altos de argila, alguns intactos e outros quebrados. Quando retiraram as tampas, sentiram um cheiro desagradável vindo de objetos escuros e oblongos encontrados dentro dos jarros. Levaram esses objetos para fora da caverna e descobriram que estavam envoltos em faixas de linho e recobertos de uma substância escura semelhante a piche ou cera.

Ao desembrulhá-los, os meninos se depararam com longos manuscritos, com texto escrito em colunas paralelas sobre folhas finas costuradas entre si. Embora desbotados e danificados em alguns lugares, os manuscritos apresentavam uma nitidez extraordinária. Os caracteres não eram em árabe, e os garotos não conseguiam entender o que estava escrito.
Esses jovens beduínos pertenciam a um grupo de contrabandistas que levavam suas cabras e outras mercadorias da Transjordânia para a Palestina. Haviam se desviado para o sul para evitar os postos de controle na ponte sobre o Jordão e foram até o Mar Morto para se abastecer de água na fonte de Ain Feshkha, a única existente naquela região árida.
Em Belém, tentaram vender os manuscritos junto com seus outros produtos de contrabando. Após algumas tentativas frustradas, os manuscritos chegaram às mãos de um comerciante sírio, que suspeitou que pudessem ter algum valor e contatou o metropolita sírio no mosteiro de São Marcos, em Jerusalém.
O metropolita Mar Athanasius Yeshue Samuel reconheceu a importância potencial dos manuscritos e os adquiriu. Assim começou a jornada dos Manuscritos do Mar Morto do obscuro interior de uma caverna para o centro das atenções do mundo acadêmico e religioso.

Da Descoberta à Decodificação | Uma Jornada Complexa
A notícia da descoberta dos manuscritos logo atraiu a atenção de arqueólogos e estudiosos. Entre 1949 e 1956, uma expedição conjunta do École Biblique Française e do Museu Rockefeller, sob a direção do Padre Roland de Vaux, explorou sistematicamente a região de Qumran.
Iniciou-se uma verdadeira corrida entre os arqueólogos e os beduínos locais, que também buscavam manuscritos nas cavernas para vendê-los. No total, onze cavernas contendo manuscritos foram descobertas, com a Caverna 4 revelando-se particularmente rica, com cerca de 15.000 fragmentos provenientes de mais de 500 manuscritos diferentes.
Os primeiros sete manuscritos, encontrados na Caverna 1, tiveram um destino complicado. Três foram adquiridos pelo arqueólogo israelense Eliezer Lipa Sukenik para a Universidade Hebraica de Jerusalém, enquanto os quatro restantes foram comprados pelo Metropolitano Mar Athanasius Samuel. Em 1948, com a proclamação do Estado de Israel e a instabilidade na região, Mar Athanasius levou os manuscritos para os Estados Unidos, onde tentou vendê-los.

Somente em 1954, Yigael Yadin, filho de Sukenik e também arqueólogo, conseguiu adquirir esses quatro manuscritos para o Estado de Israel. Assim, os sete manuscritos originais foram reunidos novamente em Jerusalém em 1955, ficando sob a guarda da Fundação Santuário do Livro. Desde a inauguração do Museu de Israel em 1965, o Santuário do Livro abriga, exibe e preserva os manuscritos.
O trabalho de organização e decodificação dos manuscritos revelou-se monumental. Os cerca de 900 manuscritos, escritos principalmente em hebraico, mas também em aramaico e grego, estavam em diferentes estados de conservação, muitos fragmentados em milhares de pequenos pedaços.
Equipes internacionais de estudiosos dedicaram-se à tarefa de decifrar, traduzir e interpretar os textos. A publicação oficial dos manuscritos começou em 1955 pela Oxford University Press, na série “Discoveries in the Judean Desert”, e só foi concluída em 2009.

Alguns manuscritos apresentavam desafios particulares, estando escritos em códigos que precisavam ser decifrados. Em 2018, pesquisadores da Universidade de Haifa anunciaram ter decodificado um dos últimos fragmentos que permaneciam obscuros, revelando detalhes sobre festividades e práticas religiosas da comunidade.
As técnicas de análise evoluíram com o tempo. Recentemente, cientistas têm utilizado análise de DNA para estudar a pele animal usada nos pergaminhos, o que ajuda a determinar quais fragmentos pertenciam originalmente ao mesmo manuscrito. “Se encontrarmos dois fragmentos que vêm do mesmo animal, saberemos que ambos devem estar próximos um do outro no quebra-cabeça”, explica Mattias Jakobsson, especialista em DNA da Universidade de Uppsala.
Hoje, a maioria dos Manuscritos do Mar Morto é propriedade da Autoridade de Antiguidades de Israel, embora alguns estejam em instituições como o Museu Arqueológico Jordano em Amã e a Biblioteca Nacional da França em Paris, ou em coleções privadas.

Um Legado Que Transcende o Tempo
Os Manuscritos do Mar Morto representam um tesouro inestimável para a compreensão do judaísmo antigo e das origens do cristianismo. Incluem os textos bíblicos mais antigos já encontrados, predatando em mais de mil anos os manuscritos que eram anteriormente considerados os mais antigos.
Entre os manuscritos, encontram-se cópias de quase todos os livros da Bíblia Hebraica, com o livro de Isaías sendo o único completo. Há também textos apócrifos, comentários bíblicos, regras comunitárias, calendários, textos litúrgicos e escritos apocalípticos.
A descoberta desses manuscritos revolucionou os estudos bíblicos e a compreensão do judaísmo do período do Segundo Templo. Revelou a diversidade textual que existia antes da padronização dos textos bíblicos e lançou nova luz sobre as origens do cristianismo, mostrando que muitas ideias anteriormente consideradas exclusivamente cristãs já estavam presentes no judaísmo da época.

Setenta anos após sua descoberta, os Manuscritos do Mar Morto continuam a fascinar estudiosos e o público em geral. Novas técnicas de análise, como a inteligência artificial, a paleografia digital e a análise de DNA, prometem revelar ainda mais segredos desses textos antigos.
A história da Biblioteca Perdida de Qumran é um testemunho impressionante da determinação humana em preservar o conhecimento diante da adversidade. Os essênios, prevendo a destruição iminente, esconderam seu tesouro literário nas cavernas do deserto. Quase dois milênios depois, um jovem pastor beduíno, por acaso, trouxe esse legado de volta à luz.
Hoje, enquanto os manuscritos repousam em vitrines climatizadas no Santuário do Livro em Jerusalém, eles continuam a contar sua história – uma história de fé, resistência e a incrível jornada de palavras escritas há mais de dois mil anos que sobreviveram para iluminar nosso entendimento do passado.

Referências
- Revista de Filosofia e Teologia. “Qumran e os Essênios: Influências Político-Religiosas Fundantes”. 2024.
- Porto, Mario Sergio. “Por que os pergaminhos do Mar Morto foram depositados em grutas?”. Quora, 2019.
- Museu de Israel. “Los manuscritos del Mar Muerto. El Proyecto Digital: Descubrimiento”. 2023.
- Revista Galileu. “Um dos últimos manuscritos sobre o Mar Morto foi decodificado”. 2018.
- Visão. “ADN de pele de ovelha ajuda a decifrar os Manuscritos do Mar Morto”. 2020.
- BBC News Brasil. “O que dizem os misteriosos trechos dos Manuscritos do Mar Morto finalmente decifrados”. 2018.
- Mega Curioso. “Arqueólogos encontram nova caverna associada com Manuscritos do Mar Morto”. 2017.
- Jornal da USP. “Manuscritos do Mar Morto ainda guardam mistérios, 70 anos depois”. 2017.