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Como a Lei Cortez pretende democratizar o livro no Brasil

O mercado editorial brasileiro vive uma crise inquietante. Nas últimas décadas, redes de livrarias fecharam lojas centrais – por exemplo, a Livraria Cultura encerrou em 2024 sua unidade no Conjunto Nacional de São Paulo – enquanto o e-commerce disparou. Em 2019, a Amazon detinha cerca de 23% das vendas de livros no país; em 2024, esse número chegou a 42%, com tendência de alta. Diante do estrangulamento das livrarias tradicionais, editores independentes e grandes distribuidores agora pressionam o Congresso por uma intervenção estatal: a chamada ‘Lei do Preço Fixo’ ou, mais recente, Lei Cortez.

A proposta tornaria proibitiva a prática de descontos agressivos em lançamentos, exigindo que títulos mantenham seu preço de capa por 12 meses, com descontos máximos de 10% apenas nesse período. O objetivo declarado é proteger as pequenas livrarias, preservar a bibliodiversidade e evitar uma concentração ainda maior do mercado nas mãos de gigantes internacionais. A iniciativa, porém, escancara uma contradição: setores que se dizem defensores do livre-mercado agora clamam por uma lei de caráter protecionista.

Ednei Procópio em audiência com a senadora Fátima Bezerra (PT-RN), que preside a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro, da Leitura e da Biblioteca.
Ednei Procópio em audiência com a senadora Fátima Bezerra (PT-RN), que presidia na época a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro, da Leitura e da Biblioteca.

O preço do livro no Brasil

Na prática, o PL 49/2015 (conhecido como Lei Cortez, em homenagem ao livreiro José Xavier Cortez) determina que “todo livro, inclusive digital, deverá receber da editora precificação única por prazo de um ano a partir de seu lançamento”, permitindo apenas 10% de desconto sobre o preço de capa nesse período. A proposta foi apresentada em 2015 pela então senadora Fátima Bezerra (PT-RN) e permaneceu engavetada até ser resgatada em 2023 pela senadora Teresa Leitão (PT-PE).

Em outubro de 2024, a Comissão de Educação do Senado aprovou um substitutivo que amplia a cobertura da regra para novas edições e reimpressões. Atualmente, o texto aguarda votação no plenário do Senado e, em seguida, análise da Câmara. Um recurso movido por 11 senadores da chamada oposição exige que a proposta seja apreciada por todos os 81 parlamentares.

Os defensores da Lei Cortez – incluindo as principais entidades do setor editorial (ABRELivros, CBL, SNEL, Livre, ANL etc.) – argumentam que a medida é vital para “garantir equilíbrio na oferta” de livros. A regra beneficiaria, dizem, os lançamentos (responsáveis por 20–30% do faturamento das livrarias) permitindo que as lojas físicas capturem vendas hoje ‘canibalizadas’ pelas plataformas on-line. Sem descontos excessivos nos e-commerces, viveriam mais livrarias independentes – essenciais como showrooms para novos títulos – e editoras poderiam arriscar publicar mais obras.

Como explicou o presidente do SNEL: “Se a editora tiver mais vitrines – o que só a livraria física oferece – e expectativa melhor quanto ao preço praticado, ela poderá se arriscar mais na hora de lançar novos títulos”. O diretor do Grupo Editorial Globo Livros conta que, em dez anos debatendo o tema, “conversamos com editores de países onde essa lei existe, para entender os benefícios”. Para ele, a pandemia apenas escancarou a vantagem competitiva que grandes varejistas on-line têm graças a descontos profundos: “com a pandemia, o e-commerce ganhou força e os descontos tornaram a competição ainda mais desigual”.

Em discurso no Senado, Fátima Bezerra também citou exemplos internacionais: a Lei Lang (França, 1981) e normas na Alemanha e Reino Unido, que dariam suporte a editoras nacionais. “Na França, houve aumento de publicações, melhor remuneração para o autor e maior expansão das livrarias de bairro”, afirmou a senadora. Alexandre Martins Fontes, atual presidente da ANL (Associação Nacional das Livrarias), reforça o tom: “A lei não é contra a Amazon, é contra o monopólio e a concorrência predatória, venha de onde vier”. Segundo ele, em vez de mirarem apenas a gigante estrangeira, os livreiros veem a regulação como defesa do conjunto do setor: manter diversidade editorial e independência das pequenas lojas diante do domínio dos e-commerces.

Livre-mercado ou protecionismo?
Livre-mercado ou protecionismo?

Livre-mercado ou protecionismo?

No outro extremo, economistas e colunistas liberais denunciam o projeto como hipocrisia ideológica e ameaça ao consumidor. Para críticos, o ‘preço mínimo’ legalmente imposto tira da população o benefício das promoções sazonais. “Para a proteção dos lucros de uma minoria de donos de pequenas livrarias, pune-se milhões de brasileiros no acesso à cultura, impondo maiores preços aos livros”, argumenta editorial da Folha de S.Paulo. Segundo o texto, a lei teria efeitos perversos: editoras teriam de avisar com 30 dias para qualquer ajuste de preço, atrasando correções naturais de mercado; e consumidores poderiam até preferir importar cópias estrangeiras (sem controle de preço) a livros nacionais, criando ‘anomalias‘no mercado.

Entidades de defesa do consumidor rejeitam a medida, pois ela acabaria com as promoções que hoje barateiam os livros nos sites de compras. Outro argumento é que o governo, por via da própria lei, contrata livros – escolas, bibliotecas e órgãos públicos – sem respeitar o congelamento de preços, criando uma exceção irônica: “o governo não criaria uma exceção na lei para compras feitas pelo próprio governo”, observa a Folha. Ou seja, para o Estado valeriam preços de livre mercado, enquanto para o cidadão a Lei Cortez seria aplicada na prática.

Esses críticos destacam também que não há garantia de que os preços cairiam no médio prazo – ao contrário, estudos sugerem que títulos novos podem encarecer se o desconto for proibido. Um editorial do Revista Oeste, por exemplo, ironiza que legislar o preço dos livros faz pensar “num adolescente com boina do Che” e lembra que no Reino Unido o fim de um acordo parecido elevou fortemente os preços dos livros, gerando queda nas vendas.

A contradição fica explícita: editoras e livreiros historicamente favoráveis ao ‘mercado livre estão pedindo ao Estado exatamente o contrário. Como diz a economista Julia Santos, do Instituto de Altos Estudos da USP, em debate sobre o tema, a questão é antes cultural do que econômica – um bem simbólico cujas regras ultrapassam a lógica puramente mercadológica. Ainda assim, na prática setores como a Câmara Brasileira do Livro e a SNEL, dirigidos por executivos com perfil empresarial, têm se alinhado a um programa protecionista. É nítido o paradoxo: ‘livre-concorrencialistas’ clamam por lei estatal para conter a concorrência.

Ao meu lado direito, ao centro, o Mestre José Xavier Cortez
Do meu lado direito, ao centro, o Mestre José Xavier Cortez; na outra ponta, meu amigo Armando Antongini; uma foto que tiramos na Livraria Martins Fontes da Paulista

Quem foi José Xavier Cortez?

A chamada Lei Cortez carrega o nome de um dos mais emblemáticos defensores da leitura, da bibliodiversidade e do livreiro como agente cultural: José Xavier Cortez (1931–2021). Nordestino de Currais Novos, no Rio Grande do Norte, Cortez mudou-se ainda jovem para São Paulo, onde começou como operário gráfico. Com esforço e sensibilidade incomuns, tornou-se editor, livreiro e fundador da Editora Cortez, reconhecida nacionalmente por seu compromisso com a educação, as ciências sociais e o pensamento crítico brasileiro.

Mais do que empresário, Cortez foi um militante do livro. Criou uma editora voltada ao pensamento pedagógico e à formação docente em um país que sempre negligenciou a leitura como direito. Também fundou a livraria Cortez, na Pompéia, referência cultural de São Paulo e importante reduto de editoras independentes. Ao longo da vida, defendeu com firmeza a regulação do mercado editorial como forma de proteger a diversidade cultural e o papel das livrarias de bairro — mesmo quando isso contrariava os dogmas do livre-mercado. Para ele, o livro era bem público, e não simples mercadoria.

Sua trajetória — do chão de fábrica às prateleiras universitárias — transformou-o num símbolo da luta pela bibliodiversidade e pelo acesso à leitura como instrumento de emancipação. Dar seu nome ao projeto de lei que propõe o preço fixo do livro é, portanto, mais do que homenagem: é uma escolha simbólica que liga a proteção das livrarias à memória de quem viu no livro um bem coletivo, e não um produto de ocasião.

Casos internacionais

Essa longa briga pela democratização do livro em um contexto capitalista não é exclusiva do Brasil. A experiência de outros países serve de munição para ambos os lados.

  • França (Lei Lang, 1981) | pioneira no preço único, a lei proíbe descontos maiores que 5% sobre o preço de capa. Seus defensores comemoram que, em 40 anos, o país mantém uma rede forte de livrarias independentes (cerca de 3.200 hoje) e uma indústria editorial diversificada. Em relatório de 2021, a pesquisadora Lívia Kalil afirmou que “a lei Lang teve um balanço muito positivo na França” – ela assegurou “pluralismo editorial e a diversidade de publicações”, além de expandir as livrarias de bairro. O exemplo francês é frequentemente citado pelos apoiadores da Cortez, que enxergam nele um modelo de incentivo à bibliodiversidade.
  • Alemanha (Buchpreisbindung) | único na Europa continental com mercado doméstico tão robusto, a Alemanha adota um regime rígido de preço fixo de livros há mais de um século. Um estudo do Börsenverein (associação do comércio de livros alemão) concluiu que esse sistema promoveu a manutenção da qualidade e da variedade de títulos, permitindo grande número de livrarias e apoio a novos autores. Pesquisadores alemães ressaltam que a lei local é compatível com regras europeias e que seus efeitos positivos compensam qualquer limitação à competição de preços. Comparado ao Reino Unido, que eliminou seu acordo de preço fixo na década de 1990, a Alemanha viu queda muito menor no número de livrarias – apenas 3% entre 1995 e 2002 (contra 12% no Reino Unido).
  • Argentina (Lei da Defesa da Livraria, 2001) | em 2001, a Argentina promulgou uma lei que fixa o preço dos livros, inspirada em modelos europeus. Segundo a Associação de Livreiros de Buenos Aires, isso tem sido “um dos fatores de estabilidade do mercado, mesmo em tempos de crise”. A legislação argentina, dizem os defensores, barrou a entrada massiva de concorrentes predatórios; Buenos Aires possui hoje uma das maiores densidades de livrarias per capita do mundo. Na visão desses apoiadores, a lei tornou a biblioteca e a leitura mais acessíveis, consolidando a capital portenha como “Capital Mundial do Livro” pela UNESCO em 2011.

Em contrapartida, países sem regulação similar registraram alguns resultados alarmantes para os críticos. O exemplo do Reino Unido é citado nas discussões: lá vigorou o acordo de preço único (Net Book Agreement) por quase todo o século XX, mas ele foi anulado judicialmente em 1997. Entre o fim do NBA e 2009, cerca de 500 livrarias britânicas fecharam. Com a abertura para descontos irrestritos, o mercado se polarizou – hoje a Amazon detém quase metade das vendas no Reino Unido, e o comércio físico perdeu relevância.

A Morte das Livrarias
A Morte das Livrarias

O nó não está no preço: está no desconto

O ponto verdadeiramente crucial — e muitas vezes ignorado nas discussões legislativas — é que o problema do mercado editorial não está no preço de capa, mas sim nos descontos concedidos e praticados de forma assimétrica. Plataformas como a Amazon não alteram o preço de capa definido pelas editoras; ao contrário, mantêm-no intacto. O que elas fazem, com maestria estratégica, é trabalhar em cima dos descontos comerciais que recebem dos próprios editores.

A Amazon não precisa disputar margem sobre o preço cheio: ela joga no campo do desconto agressivo, oferecendo ao consumidor final promoções que livrarias físicas e pequenas redes não conseguem sustentar. E faz isso por um motivo simples: ela não depende do livro para lucrar diretamente. Seu verdadeiro ganho está em outro lugar — no ecossistema que construiu em torno do cliente: fidelização por frete (Prime), cross-selling de produtos, marketing comportamental e mineração de dados.

É essa lógica de canibalização indireta que corrói o equilíbrio do setor. E, nesse cenário, não adianta congelar preços por decreto se a base do problema permanece sendo a relação desigual de negociação de descontos entre grandes plataformas e editoras.

Uma solução possível — menos intervencionista e mais pragmática — seria o estabelecimento de um acordo comercial setorial entre editoras e canais de venda, limitando consensualmente os patamares máximos de desconto praticáveis, especialmente no primeiro ano de vida de um título. Uma tipo de autorregulação com peso institucional, como já ocorre em outros mercados editoriais internacionais. Esse contexto permitiria equilibrar a concorrência sem sufocar a flexibilidade comercial, evitando que o preço de capa vire um totem simbólico enquanto a margem real continua sendo drenada silenciosamente pelos mecanismos das grandes plataformas.


O debate continua
O debate continua

O debate continua

No Brasil, defensores da Cortez usam esses precedentes internacionais como argumento: citam França, Alemanha e Argentina para justificar a própria regulação. Entretanto, apontam os críticos, contextos locais são distintos. Abaixo das aparências de semelhança, constata-se que “o Brasil não é a França”, como ironizou um economista, lembrando que hábitos de leitura e composição de mercado divergem muito.

Diante da polarização, a disputa vai muito além de números. Pesquisa da Nielsen indica que 55% dos consumidores compram livros on-line pela comodidade e pelos preços ofertados. O setor editorial reconhece que a restrição afetaria principalmente esses lançamentos iniciais (cerca de 5–6% do total de títulos em circulação), mas aposta que a médio prazo não haverá alta generalizada de preços. Na contramão do ceticismo, figuras como Marcos da Veiga Pereira (ex-presidente do SNEL) lembram estudo da Universidade de Oxford que comparou países europeus com e sem limites a descontos: “em países com leis de proteção de preços, constatou-se aumento de vendas, preços menores e um mercado editorial mais competitivo e diverso”.

Todo esse embate expõe uma contradição: editores e livreiros declaram compromisso com o mercado livre, mas buscam do Estado regras protecionistas para combater uma concorrência que consideram predatória.

“Lei do Preço Fixo” ou “Lei da Bibliodiversidade”? O nome pode variar, mas o debate traduz a tensão entre modelos de mercado e preservação cultural. Como sintetiza a presidenta de um grupo editorial: “para os editores, a sobrevivência das livrarias físicas é fundamental, pois elas funcionam como showroom para os lançamentos”.

Mas até que ponto o governo deve intervir para garantir diversidade literária? E a quem isso tudo realmente interessa?

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